A Terra chama o Universo: contribuições da ecologia para a astrobiologia

Texto de autoria de
Juliana Meurer e Milton Mendonça
UFRGS, Porto Alegre, RS

Astrobiologia e interdisciplinaridade
A astrobiologia é uma ciência inter- e multidisciplinar. Profissionais com trajetórias de formação nada parecidas podem acabar se encontrando em um mesmo grupo de pesquisa. Não era de se esperar algo diferente, afinal, estudar a origem, a evolução e a distribuição da vida no universo (a definição da NASA) requer uma tremenda diversidade de cientistas com os mais variados conhecimentos e ideias. Nessa perspectiva, sabemos que tanto a astronomia quanto a biologia carregam subdisciplinas indispensáveis. Certas áreas de estudo encontram mais espaço dentro da astrobiologia do que outras. Por exemplo, é mais comum encontrarmos um microbiólogo trabalhando com astrobiologia do que um botânico.

Neste texto, discutiremos como uma importante subdisciplina da biologia, apesar de um tanto inusitada para os astrobiólogos, têm contribuído (e ainda pode contribuir muito mais) para a astrobiologia. Essa subdisciplina é a ecologia.

Figura 1: diagrama ilustrativo com algumas das subdisciplinas da astronomia e da biologia que apresentam destaque dentro da astrobiologia.

Começaremos apresentando a definição mais básica, porém nem por isso menos certeira, na qual a ecologia é definida como a ciência das relações entre os organismos e dos organismos com o seu ambiente. O conceito parece ser amplo e não é por acaso. Ecólogos podem utilizar diversas metodologias para entender escalas como as de organismos, populações, comunidades, ecossistemas e até mesmo nossa biosfera. Outra definição para ecologia é a ciência que estuda a distribuição e abundância dos seres vivos e das interações que determinam a sua distribuição.  A amplitude e aplicabilidade de ideias dentro da ecologia fazem com que suas teorias mais consolidadas possam ser extrapoladas para qualquer lugar em que exista vida.

Uma biogeografia interplanetária
Uma importante área de estudo dentro da ecologia é a da biogeografia, que tenta compreender onde estão as espécies, onde não estão as espécies e o porquê. Aqui, estamos interessados principalmente na ideia de dispersão ecológica (o conjunto de processos que permite que organismos se fixem em um local diferente de seu centro de origem). Para a astrobiologia, destacamos a capacidade dos organismos de se dispersarem de um continente (um “reservatório” ou “fonte” de dispersores) para uma ilha ou entre as ilhas. Mas, afinal, o que isso tem a ver com a astrobiologia?

Figura 2: Possíveis rotas de dispersão de organismos. A primeira imagem demonstra rotas mais prováveis a partir de uma “fonte” de dispersores (ilhas maiores ou com ambiente melhor) indo em direção às ilhas, a segunda demonstra possibilidades de dispersão (talvez menos prováveis) entre as ilhas. Fonte: Google Earth (edições próprias).

Em 2007, Charles Cockell, um astrobiólogo, sugeriu que seria possível pensarmos em uma biogeografia interplanetária. Ele diz que a ideia da panspermia (transferência de organismos de um corpo planetário para outro) é basicamente a biogeografia de ilhas aplicada em uma escala interestelar. Ainda não temos evidências de panspermia em nosso sistema solar, porém, cada vez mais são realizados experimentos que mostram que é possível que os organismos atravessem vários dos “filtros” ou “barreiras” para a dispersão interplanetária. Um meio de transporte concreto e viável para organismos dispersores são as rochas (ou meteoroides), que podem ser ejetadas por impactos de meteoritos e abrem, então, a possibilidade da litopanspermia.  

Figura 3: Representação ilustrativa do sistema exosolar TRAPPIST-1 e as possibilidades de dispersão entre os planetas que estão na zona habitável. Perceba a clara analogia com os mapas apresentados na Imagem 2.  (Adaptado de NASA/JPL-Caltech, 2017).

Os filtros para a dispersão mencionados previamente são mais um importante ponto apresentado por Cockell. No planeta Terra, não basta apenas o organismo vencer distâncias longas, imprevistos climáticos, etc.para chegar em um ambiente novo, ou seja, ele precisa se adaptar a este ambiente (obter alimento e proteção, fugir da predação ou de patógenos, encontrar mutualistas…).

Numa escala espacial, isto fica mais complicado ainda. Para que haja litopanspermia, o conjunto de organismos “dispersores” precisa:

1 – estar em uma (talvez dentro de uma) rocha ejetada por um impacto astronômico;
2 – passar pela atmosfera do planeta impactado;
3 – sobreviver durante a viagem (usando mecanismos de dormência, por exemplo);
4 – resistir à atmosfera e ao impacto na chegada ao outro planeta;
5 – conseguir sobreviver no seu local de destino.

O único filtro que não nos possibilita desenvolver experimentos é o último. Felizmente, todos os outros já foram testados em simulações de laboratório e apresentaram resultados promissores.

Figura 4: Filtros ecológicos para a dispersão interplanetária de organismos (vivos ou mortos), supostamente presentes no processo de litopanspermia.

Mesmo que os organismos não sobrevivam a esta viagem, ainda assim poderíamos analisar a possibilidade da necropanspermia, em que componentes de organismos mortos (macromoléculas como DNA, RNA, proteínas, componentes da membrana plasmática) podem ser precursores para a vida em outros corpos celestes. Sabe-se que a água que temos disponível em nosso planeta provavelmente veio de condritos carbonáceos (um tipo particular de meteoritos) e que aminoácidos e outros materiais orgânicos já foram encontrados em diversos meteoritos desse tipo (como exemplo famoso, temos o meteorito Murchinson). Assim, se componentes que viajam dentro de rochas podem causar mudanças nos planetas (como a água causou aqui), a necropanspermia, apesar de não soar tão empolgante, ainda assim pode ser um evento relevante em nosso universo.

De metapopulações a metabiosferas
A analogia proposta por Cockell sobre dispersão interplanetária foi aprofundada por ideias ecológicas em publicações anteriores de nosso grupo de pesquisa. Para nós, a questão de organismos se dispersando em largas escalas deve não apenas ser compreendida por conceitos da biogeografia, mas por conceitos da ecologia espacial como um todo — uma área mais abrangente que também dedica-se em estudar a dispersão dos organismos e inclui a própria biogeografia.

Vamos aos poucos. A ecologia espacial lida (também) com a questão das metapopulações, que são definidas como “populações de populações”. Uma metapopulação é formada quando uma população (conjunto de organismos de uma mesma espécie) está habitando regiões geográficas diferentes separadas por uma região inabitável. Contudo, os organismos de cada subpopulação conseguem se dispersar de uma região para outra. Nós chamamos essas regiões habitáveis de “manchas”, enquanto a região inabitável é a matriz.

Figura 5: Diagrama exemplificando a dinâmica de uma metapopulação, em que quanto mais próximas as manchas (em pardo para manchas ocupadas por populações, branco para manchas desocupadas), mais comum a dispersão (setas), dificultada pela matriz (em verde). Existe a possibilidade de colonização de manchas desocupadas (p.ex. a mancha branca central). (Fonte: Mendonça, 2015).

Pense em alguma população de aves habitando em apenas uma ilha de um arquipélago. As outras ilhas seriam manchas desabitadas, já o oceano seria a matriz (aves não conseguem sobreviver em alto mar!). Parece simples compreender que ilhas de arquipélagos podem ser manchas de habitat, mas a realidade é que quase qualquer ambiente pode ser uma mancha. Enquanto aves que se dispersam entre ilhas dão um passo para formar uma metapopulação, formigas que conseguem atravessar um córrego também já podem desenvolver tal dinâmica.

Certo, já entendemos o que ocorre na Terra. Agora, é hora de pensar para além dela. a ideia das metabiosferas destaca então que os estudos sobre litopanspermia estão avançando cada vez mais. Porém, ainda falta a ecologia espacial compreender as consequências dessa possibilidade. É aí que está toda importância de entendermos a base do conceito de metapopulações: se uma população se dispersando entre manchas forma uma metapopulação, então representantes de uma biosfera (ou seja, a própria vida) se dispersando entre corpos celestes como satélites e planetas (que também seriam “manchas”) podem formar uma metabiosfera.

Figura 6: Dinâmica hipotética de uma metabiosfera, que se forma por biosferas conectadas a partir da dispersão por litopanspermia. (Fonte: Mendonça, 2015).

Essa analogia de metapopulações na Terra com as metabiosferas no espaço nos faz perceber algo bastante importante: a de que teorias ecológicas elaboradas para entendermos sistemas ecológicos na Terra podem ser utilizadas para entendermos o espaço. E qual é a importância disso? Ora, se astrobiólogos de fato encontrarem dinâmicas de dispersão interplanetária — e outras dinâmicas que envolvem a relação de organismos com seus ambientes —, não estaremos diante de algo totalmente desconhecido. Dessa forma, já teremos bases fundamentais para compreender tais processos (o que pode nos poupar um bom tempo e evitar a sensação de que teremos que desenvolver novas hipóteses “do zero”).

Figura 7: Glossário dos termos ecológicos empregados neste artigo. Uma breve pausa para retomar conceitos importantes!

O estudo da ecologia espacial é bastante complexo. Por isso, as ideias apresentadas aqui talvez sejam difíceis de entender em um primeiro contato, principalmente porque, para expandi-las ainda mais, precisaremos analisar formulações matemáticas complexas por trás dos conceitos aqui propostos e outros mais avançados. Entretanto, acreditamos que este é um bom início para começarmos a abrir portas para novas disciplinas dentro da astrobiologia.

Quem consegue viver fora da Terra? Ecologia e habitabilidade
Já que a ecologia também busca entender a relação dos organismos vivos com seus ambientes, faz bastante sentido pensar na ecologia como uma boa ferramenta para entender se a vida pode existir em determinados ambientes ou não. Habitabilidade é, de uma maneira bastante simplificada, a capacidade de uma área em sustentar a vida. 

Existem modelos quantitativos de habitabilidade para o planeta Terra; nesses, os ecólogos já são experts pois, desde a década de 1980, são trabalhadas ideias nessa perspectiva. O que os ecólogos fazem é calcular, com o auxílio de diversos parâmetros (temperatura média, umidade, presença de presas, etc.), a capacidade dos habitats em abrigar determinadas espécies a partir da relação organismo-ambiente conhecida e mensurada para essas espécies. Quando ecólogos discutem sobre a habitabilidade de múltiplas espécies, também tendem a procurar entender a riqueza de espécies e a biodiversidade presente no ambiente.

Figura 8: Um modelo de adequabilidade ambiental para um anfíbio anuro na região da Floresta Atlântica. Num gradiente de cores, desde azul, regiões inadequadas para o animal, até  vermelho, as regiões mais adequadas. (Fonte: Vancine, 2015).

Apesar dessa longa experiência, os ecólogos não são tão engajados assim em estudos sobre habitabilidade extraterrestre, enquanto astrobiólogos não usam modelos ecológicos de habitabilidade como principal referência. Essa separação se dá pois a astrobiologia tendeu até agora a apresentar habitabilidade como algo binário: ou um planeta é habitável, ou não é. Alguns astrobiólogos defendem que a astrobiologia deve seguir com sua própria ideia de habitabilidade em vez de se apoiar na ecologia para pensar em um modelo geral.

A “Zona Habitável” de um sistema planetário, proposta na década de 1950, utiliza como parâmetro a possibilidade de existência de água no estado líquido na superfície rochosa. Assim, a definição dos limites dessa zona utiliza nosso planeta como principal referência e busca planetas que estejam em uma posição semelhante à Terra dentro de seu sistema solar. Esse conceito não leva em conta outros fatores ambientais (e consequentemente ecológicos), sendo apenas um parâmetro inicial para buscarmos vida.

Figura 9: Limites de zona habitável, respectivamente, dos sistemas TRAPPIST-1 e do nosso Sistema Solar. A Zona Habitável está representada pela cor verde. Planetas que estão no disco vermelho já são “quentes demais” e os do disco azul já são “frios demais”.  (Foto: NASA/JPL-Caltech).

As pesquisas com extremófilos, entretanto, vêm expandindo cada vez mais o rol de habitats terrestres, que agora contemplam desde geleiras até fontes hidrotermais. É importante sabermos que tais ambientes com condições extremas (para nós humanos, pois para os extremófilos a condição extrema é a nossa) podem possuir análogos no sistema solar como, por exemplo, o deserto do Atacama sendo análogo ao solo, umidade e pressão atmosférica marcianos. 

Figura 10: Deserto do Atacama, onde a umidade no ar é de 2 a 3%. É um ambiente análogo ao planeta Marte. Foto: Martin Bernetti / AFP (Reprodução: G1).

Com isso, surge o entendimento de que os planetas e satélites fora da “zona habitável” talvez também sejam habitáveis. Como exemplo disso, trago uma pesquisa muito interessante que utilizou-se de uma ferramenta da ecologia (a modelagem de nicho ecológico) para entender se Encélado seria um possível habitat para as bactérias metanogênicas e a resposta foi positiva. Por ser uma lua de Saturno, Encédalo está bem distante da zona habitável de nosso sistema solar, entretanto, uma análise ecológica consistente nos mostra que a vida pode existir lá.

Figura 11: Encélado, um satélite de Saturno onde bactérias metanogênicas existentes na Terra poderiam sobreviver. (Fonte: NASA/JPL/Space Science Institute).

Em um longo artigo de revisão, o astrobiólogo Abel Mèndez e seus colaboradores sugeriram que o consolidado modelo de habitabilidade na astrobiologia pode (e deve) ser alinhado com modelos desenvolvidos pelos ecólogos. Juntando esforços de astrobiólogos e de ecólogos, será possível desenvolver um modelo padrão para a habitabilidade. A padronização de modelos permite uma comparação mais refinada entre planetas e ambientes extraterrestres, além de trazer insights sobre quais condições são mais importantes para a existência de vida. Para os autores,

“Novos modelos de habitabilidade devem ser desenvolvidos e validados com experimentos de campo e laboratório, incluindo ambientes análogos extremos e simulações (por exemplo, Taubner et al., 2020). O objetivo principal é identificar lacunas de conhecimento. (…) Avanços na compreensão das interações clima-vida (…) no sistema da Terra podem fornecer novos insights para modelos de habitabilidade.” (Tradução livre, de Méndez et al, 2021).

Os autores dessa revisão se mostram bastante abertos à ecologia, sugerindo até mesmo cooperações entre organizações internacionais de ecologia e de astrobiologia. Esse seria o próximo passo do que está sendo discutido aqui; primeiro, entendemos como a ecologia pode trazer contribuições para a astrobiologia; depois, sugerimos maneiras de potencializar essas contribuições e fazer o campo avançar como um todo.

Entendendo a Terra “de fora”: a Ecologia Global
A ecologia global surge com o avanço de tecnologias que possibilitam estudar os processos ecológicos do planeta como um todo. Ela tem suas raízes na hipótese Gaia, elaborada por James Lovelock, que propõe que a camada da Terra onde há vida (a biosfera) possui capacidade de se auto-sustentar, gerando, mantendo e alterando suas condições ambientais. A ideia, mesmo sendo bastante controversa, abriu a possibilidade de entendermos nosso planeta como um grande sistema.   

Figura 12: O ciclo biogeoquímico da água. Note que processos ambientais, como precipitação, juntam-se a processos biológicos, como evapotranspiração, criando um sistema integrado. A vida é capaz de afetar a atmosfera e os oceanos! Fonte: USGS, tradução de Maria Helena Alves.

A partir do uso de ferramentas da ecologia global, podemos compreender:
– Como os seres vivos afetam a atmosfera de nosso planeta;
– Como se dá o equilíbrio dos gases atmosféricos;
– Qual é o papel da vida na manutenção dos ciclos biogeoquímicos;
– Quais são as bioassinaturas da vida (como a vida afetou o planeta ao ponto de conseguirmos percebê-la de longe); etc.

Porém, por que é importante estudar o nosso planeta como um todo?
Refinar as ferramentas utilizadas para estudar a Terra “de fora” é crucial no entendimento das atmosferas (e possíveis biosferas) de exoplanetas. Como não existe a possibilidade de estudá-los in situ, utilizamos sondas e telescópios (como o James Webb!) para coletar informações sobre a composição de seus gases, sua crosta, suas temperaturas, etc. A capacidade de analisar “dados gerais” de um só planeta para obter informações mais específicas (como, por exemplo, entender se determinadas quantidades de metano podem indicar existência de vida) é tão fundamental para a astrobiologia quanto para a ecologia. Desde estimar quais planetas poderiam conter/sustentar a vida até compreender as consequências do aquecimento global na Terra, a ecologia global pode nos ajudar a responder duas das questões mais centrais da Ciência: estamos sozinhos? e o que estamos fazendo com nosso planeta?

Figura 13: O telescópio James Webb, que nos ajudará a estudar as atmosferas de planetas distantes. Imagem: NASA James Webb Space Telescope/Flickr/Reprodução.

E o que mais?
Neste texto, apresentei algumas das contribuições recentes da ecologia para a astrobiologia. Entretanto, isso é apenas uma parte do que pode ser feito e aprofundado. Da teoria ecológica às observações e experimentos de campo, a ecologia vem trazendo, em algumas vezes de forma mais perceptível e noutras mais discreta, importantes discussões para a astrobiologia. Quanto mais interdisciplinaridade conseguimos trazer para a astrobiologia, mais completo o conhecimento sobre a origem, a evolução e a distribuição da vida no universo que poderemos construir!

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