Texto de autoria de
Mirian L. A. Forancelli Pacheco
UFSCAR, Sorocaba, Brasil
Sobre como os fósseis são promissores para investigação da vida fora da Terra
Uma tarde em 1986
Eu tinha cinco anos quando a minha mãe me levou a um museu de história natural pela primeira vez. Eu era uma criança muito tímida da zona rural de Mato Grosso do Sul, que acabava de se mudar para a “cidade grande” (no caso, a capital). Eu ainda estava me ajustando à escola e aos meus problemas de socialização.
Minha mãe me segurava pela mão enquanto acertava os valores do ingresso (porque as crianças não pagavam) na bilheteria. Uma senhora muito simpática nos orientava sobre como começar a visitação e eu sentia um aroma estranho que se misturou à visão grandiosa que eu, como criança, tinha daquele lugar.
A primeira coisa que vi logo na entrada foram o que reconheci como “peixes de pedra”:
“Mãe, isso é um peixe de pedra?”
“São fósseis, Liza. São animais que viveram e morreram há muito tempo e viraram pedra.”
“Muito tempo? Quando eles viveram? Como viraram pedra?”
Ela se aproximou para ler as descrições: “Aqui está escrito que eles existiram há mais de cem milhões de anos. Isso é muito muuuuito tempo mesmo. É mais velho que você, eu, seu pai, sua avó... Mas não sei se você consegue entender isso agora. A vida era muito diferente antes. A vida vai mudando…”
“Mas como eles viraram pedra, mãe?”
Ela voltou a ler as descrições: “Parece que eles viveram em um lago bem grande. Quando eles morreram, começaram a boiar por um tempo. E depois foram apodrecendo (igual quando a gente deixa a comida fora da geladeira) e começaram a afundar no lago e essa pedra foi se formando ao redor deles. Parece que é isso.” (Veja mais sobre os peixes do Araripe)
Eu realmente não entendi por algum tempo (até aprender um pouco de matemática) o que cabe em cem milhões de anos. Mas compreendi de forma genérica como os organismos viravam rocha. A explicação da minha mãe, o aroma do museu (de coisas embalsamadas e poeira) e a visão daqueles peixes na rocha se combinaram em meus pensamentos de uma forma que me capturou para sempre.
Fósseis e a imensidão do tempo
A imensidão do tempo é algo que ainda tento entender como paleontóloga. E essa tarefa só não é mais angustiante justamente por causa dos fósseis: os restos e vestígios que a vida um dia deixou (majoritariamente) nas rochas. O registro fóssil é o nosso grande álbum de fotografias do tempo geológico. Por meio dele conseguimos fazer viagens no tempo. E se acionarmos essa máquina, veremos que as primeiras formas de vida se preservaram nas rochas há não muito mais que 3,5 bilhões de anos. Mas é muito provável que a vida tenha surgido em nosso planeta mesmo antes (veja "O fóssil mais antigo do mundo?!?"), de forma quase concomitante à formação da Terra (há mais ou menos 4,5 bilhões de anos). Acontece que a vida só começa se fossilizar quando o nosso planeta se resfriou ao ponto que as rochas que formam a crosta se estabeleceram. Isso porque, no início, tudo era uma “bola de magma” muito quente.
Minha mãe acabou sintetizando bem o processo de fossilização de modo que uma criança de cinco anos pudesse compreender. Desde então, eu aprendi que os organismos podem se fossilizar das mais diversas formas e em ambientes variados. Existem organismos que se preservam em resinas vegetais (como o âmbar), outros são congelados, alguns outros podem até ser mumificados em ambientes muito secos (como os desertos) (leia "O que são e como se formam os fósseis"). Mas a forma mais comum de se preservar organismos como fósseis são em rochas sedimentares.
As rochas sedimentares são formadas por algo que um dia foram sedimentos transportados de diversas partes (dunas, praia, rios etc.). O processo de fossilização nesse tipo de rocha ocorre mais ou menos assim: (1) o organismo (planta, animal, fungo etc) morre; (2) a carcaça pode ficar um tempo exposta e sofrer algumas alterações (decomposição, desarticulação, fragmentação, transporte); ou (3) esse organismo quase não sofre alterações logo após a sua morte; (4) e então é soterrado por sedimentos; (5) uma série de alterações químicas faz com que os sedimentos se transformem em rocha e que o organismo se preserve nesse processo.
Algumas dessas etapas podem ser mais longas que outras, ou podem nem ocorrer. O importante é que quando um fóssil é produzido (e encontrado!), temos a nossa janela para o passado. O organismo fossilizado pode nos dizer muito a respeito de formas e modos de vida que já não existem mais. Enquanto a rocha em que ele se preservou pode conter informações importantes a respeito do ambiente de morte, ou mesmo de vida, desse organismo.
Podemos descobrir que um inseto explorava, em vida, plantas com flores, mas, de alguma forma depois da sua morte, se preservou no fundo de um grande lago. Podemos, inclusive, ir mais além, e investigar qual tipo de planta esse inseto polinizava, e também qual a temperatura do lago onde ele se preservou depois de sua morte. Também conseguimos estudar como as bactérias desse lago ajudaram a preservar esse inseto como um fóssil há mais de 110 milhões de anos. Eu também poderia me interessar tanto por essas bactérias, a ponto de estudar as condições ótimas para seu estabelecimento nesse lago há centenas de milhões de anos. E, por incrível que pareça, foi aqui que acabei sem querer (mas querendo!) trabalhando também na área da astrobiologia.
A vida e seus sinais… em outros mundos?
Bactérias fósseis são meio difíceis de serem estudadas. Na maioria das vezes o que se preservam delas são sinais de suas atividades: moléculas e minerais específicos e estruturas com formas bem determinadas, parecidas com melecas que “abraçam” os grãozinhos das rochas que envolvem os organismos fósseis. Esses sinais das bactérias são conhecidos como bioassinaturas.
Todos os sinais que a vida produz de sua presença e atividade são bioassinaturas. Além de meleca de bactéria, alguns outros exemplos de bioassinatura são fezes de mamutes e cascas de ovos de dinossauros, que também se fossilizam. Os elefantes têm um código bem complexo de comunicação por infrassom, que pode ser captado entre eles há mais de quatro quilômetros de distância (é uma bioassinatura bem estudada para compreender as relações sociais entre os integrantes das manadas). Seres humanos também produzem tipos bem específicos de bioassinaturas: copos, mesas, computadores, carros (tudo que emana da nossa tecnologia).
Os astrobiólogos são muito interessados em bioassinaturas de todos os tipos, incluindo as que se fossilizam. Esses cientistas podem estudar desde minerais produzidos por bactérias da ferrugem, passando pelos gases que emanam da matéria orgânica em decomposição até as formas de comunicação entre animais. Todo e qualquer sinal da vida conta para investigarmos e entendermos como a vida se originou, evolui e se distribui no cosmos.
Por enquanto, todos os sinais da vida que conhecemos foram identificados apenas na Terra. Mas o grande esforço conjunto entre os cientistas que estudam bioassinaturas tem proporcionado o desenvolvimento de novas formas de investigação da vida em outros mundos do Sistema Solar.
Enfim... Marte
No passado, Marte era um planeta um pouco mais parecido com a Terra: rico em água líquida em superfície e com uma atmosfera mais densa. Sabemos disso porque esse planeta preserva um registro sedimentológico muito informativo: argilas corroborando a existência de lagos no passado, carbonatos, arenitos, além de minerais que em algum momento necessitam de água (ou talvez até da ação de microrganismos?) para sua precipitação, como os sulfatos.
O estudo desses ambientes em missões futuras a Marte pode revelar as tais bioassinaturas em uma cratera cheia de argila e sulfato. E é por isso que paleontólogos, físicos, químicos, microbiologistas, dentre outros cientistas, se reúnem para se dedicarem ao estudo detalhado sobre a vida aqui na Terra. Ainda sabemos pouco sobre os limites da nossa própria biosfera, nas mais diversas formas que a Terra assumiu em seus mais de quatro bilhões de anos de sua história. Mas quanto mais estudamos, mais somos capazes de reconhecer as condições em que a vida pode se estabelecer aqui e em outros lugares do cosmos.
Depois daquela tarde
Quando cresci e ingressei na faculdade, eu voltei naquele mesmo museu. Ele fez parte da minha formação, desde a infância até os anos de estágio e monitoria que se seguiram. Foram anos estudando os fósseis e explicando o que aprendia para os visitantes (em geral, excursões de escolas e grupos de estrangeiros).
Acabei saindo de Campo Grande para concluir os estudos. Mas sempre quando visito meus pais, eu também não posso deixar de visitar “o peixe de pedra”. Ainda imagino sua história de vida e morte, há mais de cem milhões de anos, em um grande lago que já não existe mais, de um mesmo planeta agora muito diferente.
Autora: Mírian Pacheco