Texto de autoria de
Rafael de Camargo Vaz
LUCA - Ciência para Educar, Brasil
Você já pensou em como seria uma forma de vida que se desenvolveu sem contato com a atmosfera ou os oceanos terrestres?
Essa temática é um dos principais assuntos quando se trata do Lago Vostok. Esse lago, presente na região oeste da Antártica, está localizado abaixo de milhares de metros de gelo maciço e, mesmo assim, permanece em estado líquido.
Mas como uma região tão fria e tão distante da superfície irradiada por luz solar pode abrigar água em estado líquido? Para isso ser possível, os cientistas estimam a presença de fontes hidrotermais e gêiseres no fundo desses locais, que podem aquecer a água do Lago Vostok. Além disso, um dos fatores mais interessantes a respeito do Lago Vostok é que, há milhões de anos, ele está completamente isolado da atmosfera terrestre.
Agora imagine possíveis formas de vida presentes nesse local tão frio, mas ainda em estado líquido, e privado de qualquer contato com os gases presentes na atmosfera. Que tipos de seres poderiam sobreviver nessas condições? O quão diferentes eles seriam dos organismos que vivem na superfície, ou nos oceanos? Quais mecanismos eles utilizariam para sobreviver nessas condições?
Foram essas perguntas que levaram cientistas a perfurar os milhares de metros de gelo para estudar o Lago Vostok!
Até mesmo antes de atingir o lago, os pesquisadores fizeram descobertas muito interessantes. Na própria camada de gelo, foram encontrados organismos vivos em pequenas poças de água, mantidas líquidas pela alta concentração de sal presente. Surpreendentemente, esses seres sobrevivem em temperaturas abaixo de 0 ºC.
Além disso, chegando mais perto do lago, existe uma camada composta pelo chamado ‘gelo de acreção’, localizado entre a água líquida do Lago Vostok e a camada de gelo superior. Nessa região, além de bactérias congeladas, foram encontrados moléculas de DNA preservadas similares ao da Hydrogenophilus thermoluteolus, uma bactéria termofílica encontrada em fontes hidrotermais de altíssima temperatura. Tais achados podem ser indícios da presença de um sistema geotermal de aquecimento que mantém a água do Lago Vostok em estado líquido.
Mas como é que organismos habitam ambientes tão inóspitos como porções de água mais frias do que 0º, ou fontes hidrotermais mais quentes do que 100ºC? Existe uma variedade gigante de organismos que vivem nessas condições extremas, os chamados ‘extremófilos’, como nós já discutimos (Habitantes do inóspito).
Extremófilos
Durante as últimas décadas, os cientistas foram capazes de descrever uma diversidade de seres vivos que sobrevivem em ambientes extremos, que eram considerados inabitáveis. Entre esses seres, há organismos dos 3 domínios da vida: arqueas, bactérias e eucariontes, que expandem nosso entendimento a respeito da faixa de condições em que a vida pode existir.
Há extremófilos que sobrevivem a altíssimas ou baixíssimas temperaturas, enorme exposição à radiação ionizante, p.H. extremamente ácido ou alcalino, e muitas outras condições que nós, humanos, consideraríamos inóspitas.
Quando tratamos do Lago Vostok, encontramos organismos vivendo dentro de uma camada de milhares de metros de gelo, em porções de água líquida abaixo de 0ºC. Esses organismos que toleram temperaturas extremamente baixas são chamados de psicrofílicos.
Psicrófílicos
Esses seres são capazes de sobreviver e deixar descendentes nesses ambientes extremamente frios, e são representados por diversos grupos de bactérias, como Deinococcus e Psychromonas, e alguns grupos de líquens, organismos que sobrevivem em uma diversidade de ambientes muito frios. Entre eles, pode-se citar o polo norte e o polo sul, o fundo dos oceanos, o Ártico e a Antártica, além de regiões glaciais e regiões alpinas. Juntos, esses ambientes totalizam aproximadamente 70% da Terra.
É interessante pensar que, muitas vezes, pensamos que esses grupos de seres são muito específicos e limitados, ocupando apenas alguns poucos lugares raros. No entanto, discutimos que esses ambientes não são, de forma alguma, raros no planeta, e são muito diversos entre si, mostrando que os organismos psicrofílicos são extremamente diversos e apresentam uma série de adaptações que os permitem tolerar essas condições tão adversas.
Mas afinal de contas, você deve estar nesse site buscando entender um pouco mais sobre Astrobiologia. Então de que forma esses estudos do Lago Vostok e dos organismos psicrofílicos podem nos auxiliar nos ramos de pesquisa dessa área?
Astrobiologia
É muito interessante notar que existem muitos locais no universo em que as condições extraterrestres são caracterizadas por frio extremo, como em calotas de gelo em Marte, ou a lua Europa, coberta de gelo. Muitas dessas regiões podem ser comparadas e estudadas por meio de ambientes análogos no planeta Terra. Entre esses ambientes, há o próprio Lago Vostok! Mas o que ele tem de parecido com outros astros do Sistema Solar?
Lua Europa
Quando comparamos o Lago com a lua Europa, notamos diversas similaridades. Primeiramente, os cientistas esperam encontrar, na lua Europa, um lago em estado líquido abaixo de uma espessa camada de gelo, muito similar à estrutura descrita na Antártica. Além disso, estima-se a presença de fontes de aquecimento hidrotermais no fundo desse lago, mantendo-o em estado líquido, junto com as forças de maré causadas pelo planeta Júpiter.
Ademais, de maneira muito curiosa, a superfície congelada de Europa apresenta algumas rachaduras causadas pela movimentação das placas de gelo, muito similar ao que ocorre com as placas tectônicas, indicando um movimento convectivo interno. E, pela presença de um campo magnético, estima-se que esse lago debaixo da superfície apresente sais dissolvidos, de maneira similar aos oceanos da Terra.
Com todas essas similaridades entre a lua Europa e o Lago Vostok, caso a vida for confirmada no Lago, os cientistas poderiam usá-la de modelo para o estudo de uma possível vida extraterrestre na lua Europa. As expedições para explorar uma possível forma de vida nessa lua seriam muito complexas, ainda mais considerando a rigidez e espessura da camada de gelo. Assim sendo, ter um modelo de seres vivos para começar esses estudos é muito vantajoso.
Isso mostra que não precisamos viajar pela galáxia para começarmos a pensar em como seriam possíveis formas de vida extraterrestre, podemos partir de exemplos aqui da Terra! Estudar ambientes extremos de nosso planeta nos ajuda a entender a variabilidade metabólica e o poder de adaptação dos organismos a diferentes condições ambientais. Assim, expandindo as fronteiras de habitabilidade para as formas de vida que conhecemos.
Mas as vantagens de estudar esses organismos não para por aí, o estudo de seres psicrofílicos e os ambientes nos quais sobrevivem também é interessante para abordar o conceito de Zona Criogênica.
Zona Criogênica
Antes de entendermos o que é a Zona Criogênica, precisamos falar sobre a Zona Habitável, que é definida como o conjunto de distâncias de uma estrela em que um planeta ou lua pode abrigar água líquida em sua superfície. A presença de água líquida, como já abordamos no texto “O que torna um planeta habitável?”, é extremamente importante para a vida que conhecemos no planeta Terra.
No entanto, estamos abordando a possibilidade da presença de vida em regiões frias, como o Lago Vostok, em que a água líquida está debaixo de uma camada de gelo. Nesse contexto, a Zona Criogênica seria uma espécie de “expansão” da Zona Habitável, considerando a presença de fontes de calor além da estrela, que poderiam manter a água de um corpo celeste em estado líquido, mesmo que não seja na superfície. Como exemplo dessas fontes de calor, podemos pensar em fontes hidrotermais, forças de maré, gêiseres e processos radioativos exotérmicos.
Esses conceitos podem se tornar muito interessantes para a busca por vida extraterrestre, uma vez que se aplicam para todos os sistemas estelares que possuem planetas ou luas nessa Zona Criogênica. Dessa forma, quanto mais estudamos os organismos psicrofílicos e seus mecanismos de sobrevivência, mais promissora se torna a busca por vida nas zonas frias do universo.
É importante ressaltar, depois de todos esses aspectos, que o estudo de microrganismos e, em particular, os organismos extremófilos, é muito enriquecedor para a astrobiologia e outras áreas do conhecimento. No entanto, ainda há muito estudo a ser feito, pois conhecemos uma parte pequena da biota microbiana do planeta, e uma parcela ainda menor consegue ser cultivada em laboratório. Quanto mais organismos conhecemos, e quanto mais entendemos os mecanismos que permitem sua sobrevivência, mais informação tiramos sobre a história e a própria natureza da vida.
E você? Gostou dessa temática? Quer nos ajudar a entender melhor as fronteiras da vida?Compartilhe esse texto e aproveite para ler os outros trabalhos da SBAstrobio!