Texto de autoria de
Mírian L. A. Forancelli Pacheco
UFSCAR, Sorocaba, Brasil
Sobre como podemos perceber e comunicar a presença da vida
Em uma sexta-feira qualquer de outubro de 2017, eu estava ministrando uma aula sobre os grandes eventos da Era Mesozoica (só para que vocês saibam: muita coisa aconteceu além dos dinossauros). Olhei para o relógio… ainda eram 21:10, e daria tempo de explicar sobre a “Revolução Marinha do Mesozoico” (RMM) (mais para frente eu vou explicar o que foi a RMM).
Logo que comecei a escrever na lousa, percebi que havia alguma coisa errada com meu olho esquerdo. Fechei o olho direito para analisar melhor o estado do olho esquerdo. Eu estava “enxergando” vários “pontinhos de luz”, como fogos de artifício dentro do meu olho. Eu disse a mim mesma que isso era apenas cansaço e continuei com a aula; afinal, era uma sexta-feira à noite, encerrando uma semana intensa de trabalhos na coordenação de curso, pesquisa e orientação de alunos.
Logo que cheguei em casa, continuei percebendo esses pontinhos de luz no olho esquerdo. Dormi dizendo para mim mesma “amanhã devem desaparecer… isso é apenas cansaço”. No dia seguinte, eles estavam mais intensos, maiores, e alguns se aglutinaram formando uma “cortina prateada” que cobria uns 40% da visão do meu olho esquerdo. Acessei os professores da UFSCar via grupo de WhatsApp e perguntei por sugestões de oftalmologistas. Eu ainda tinha sábado e domingo pela frente. Eram dois dias para eu pensar sobre, o que, para mim, era a pior coisa...
Na segunda-feira, eu estava na sala de espera do primeiro de cinco oftalmologistas que fariam parte dessa saga. Quando chegou a minha vez, expliquei a situação. O médico me examinou e disse que detectou uma série de pontos de inflamação na minha retina. Naquela altura, eu já estava com 90% de comprometimento da visão do olho esquerdo. Foi a primeira vez que eu vi um médico suando “em bicas” e levando as mãos ao rosto, na minha frente. Ele voltou para a mesa, procurou um livro, abriu, folheou, coçou a testa…. Fechou o livro: “Isso pode ser um verme comendo seu olho por dentro… pode ser uma inflamação simples, uma doença autoimune … ou até um resfriado mal curado. Não faço ideia! Vou te encaminhar a um colega especialista em retina”. Eu saí do consultório, fui até a rua, e apenas quando atravessei para a outra calçada lacrimejei: “Não quero ficar cega”.
Desde criança eu sou tachada de romantizadora do “overworking” (= trabalhar além da conta). Certa ou errada, as duas únicas coisas nas quais eu conseguia pensar enquanto perdia a visão era: (1) será que vou ficar cega dos dois olhos? (2) E se isso acontecer, como vou continuar sendo cientista na minha área? Realmente eram apenas essas perguntas que me angustiavam… no resto eu poderia dar um jeito.
Como a maioria das pessoas, eu dependo muito da visão para exercer meu trabalho. Sou paleontóloga. Preciso observar pequenas estruturas de organismos fósseis, texturas, cores e formas de minerais muito pequenos, espectros que revelam composições químicas de determinadas amostras… dentre outras coisas que envolvem enxergar minimamente. Além disso, também sou professora, escrevo muito à lousa em minhas aulas, enfatizo cores e cenários visuais em minhas explicações. Como eu faria sem a minha visão? Subir as escadas do laboratório, dirigir um carro, ir a campo, olhar amostras sob o microscópio… Todos esses pensamentos passavam pela minha cabeça de forma misturada, desordenada e atordoante.
Vou usar esse drama pessoal para refletir sobre como nós primatas, na dependência que temos da visão, tendemos a usá-la majoritariamente em relação aos outros sentidos (e como isso pode ser insuficiente).
Emprestamos estilo a toda sorte de artefatos que, inicialmente, projetamos para o cumprimento de funcionalidades específicas (para uma leitura mais aprofundada leia esse artigo). Por exemplo, podemos pensar em poucas funções específicas para um “prato” (sendo a principal delas relacionada às refeições), mas existem diversos estilos de pratos, com os mais variados formatos, cores e tamanhos (alguns são utilizados quase que exclusivamente para decoração).
O significado funcional de um prato (alimentação) pode ser resgatado dos tempos mais remotos da humanidade até os dias, em diferentes sociedades humanas. Em outros casos, um objeto pode parecer ser imbuído apenas de estilo, posteriormente recebendo uma função. Desenhos e cores de bandeiras podem comunicar a identidade de determinado grupo, reforçando hierarquia, ordem ou senso se pertencimento. Bijuterias e pinturas corporais podem comunicar identidade individual, além de realçar atributos físicos.
Antropólogos e arqueólogos têm estudado o significado de artefatos (objetos) e de variadas formas de expressões capazes de comunicar identidade por meio do estilo. Prestamos muita atenção visual ao produto final de nossas intenções: cores, desenhos, formas e tamanhos. Nas representações rupestres retratadas nos paredões rochosos de alguns sítios arqueológicos do Brasil, conseguimos diferenciar aves de mamíferos (zoomorfos), observando o padrão de formas, tamanhos relativos e desenhos anatômicos. Também é possível observar a representação de seres humanos (antropomorfos) em comportamentos que remetem a caça, danças, relações sexuais, dentre outros. Interpretamos o significado essencial de alguns desenhos da Pré-história humana, baseados em nosso conhecimento de mundo. Contudo, possíveis significados mais subjetivos, como simbolismos, rituais, relações de poder, mitos etc., são muito difíceis, senão impossíveis, de serem decodificados na ausência do narrador (no caso, o desenhista). Além disso, se as reapresentações rupestres também são consideradas manifestações artísticas, o valor dos significados passa a ser ainda mais subjetivo e pessoal.
Esse é um exemplo de como o sentido da visão do investigador (embora muito útil) pode carregar uma série de limitações e vieses capazes de alterar as percepções sobre as intenções do criador/artista. Logo, representações visuais (como desenhos, pinturas ou mesmo palavras escritas) podem ser de difícil interpretação, especialmente sob influência do tempo.
Nós, os humanos, percebemos o tempo como linear ou cíclico (independente da sensação que temos sobre a duração dos eventos). Isso pode interferir, inclusive, na nossa linguagem (falada e escrita) (veja também esse e esse outro vídeo). Assim, é comum que ao nos expressarmos (na forma escrita ou falada) organizemos fatos e acontecimentos em “antes”, “durante” e “depois”: “Ontem à noite, eu jantei no shopping, e depois eu fui ao cinema”; “Eu nasci no dia 4 de julho de 1981”; “Nossa reunião de trabalho pode ser antes das 16:30? Depois disso eu tenho outro compromisso”.
Minha querida amiga e astrônoma, Mariângela de Oliveira-Abans (ela já esteve por aqui em outro texto do blog: O que é? O que é?), leu esse texto antes de vocês. Além de ter ajudado a melhorar substancialmente o texto, olhem o comentário dela sobre as últimas três linhas do parágrafo acima: “Hum... Liza, me mata... Essas frases não parecem precisar de linearidade. “Depois” e “antes”, p.ex., são marcas de sequência de ocorrência, independentemente de como o tempo terá passado entre esses fatos, ou seja, independentemente de qual função matemática foi usada para descrever os acontecimentos entre ambos – linear ou não.”. A Mari é minha mais recente mentora, e precisei expressar o ponto de vista dela aqui.
Talvez astrônomos e paleontólogos discordem sobre o conceito de “linearidade”…. E talvez isso tenha relação com o pobre repertório matemático que é exigido de um paleontólogo (ainda bem!). Em ciência, é comum que áreas diferentes usem a mesma palavra para definir conceitos parecidos.
Os paleontólogos visitam o passado passeando pela seta do tempo (a nosso ver, linear e direcional quando se trata de passado – presente). Nessa percepção do tempo geológico é que conseguimos organizar e compreender o registro fóssil: “O tiranossauro mais antigo ainda é mais recente que o trilobita mais antigo”. E assim podemos estabelecer a idade de algumas rochas de uma forma relativa.
Agora imagine uma civilização mais avançada que a nossa (do ponto de vista científico e tecnológico) tentando nos acessar. Vamos fazer uma breve analogia. Pense em uma formiga caminhando na parede do seu quarto. Você pode observar detalhes do corpo dela, o trajeto que ela faz. Você pode até mesmo inserir pequenas barreiras, alterar e limitar os caminhos que ela poderia percorrer. Você pode, inclusive, falar: “Oi, dona formiga”. Tudo isso sem que ela notasse sua presença. No livro “Tunguska”, do meu grande amigo Max Abans, renomados cientistas demoram a se dar conta do que está acontecendo quando todas as barreiras, códigos e protocolos ligados aos networks da Terra ficam transparentes; até que o Dr. Raymond Poe levanta a hipótese de que estamos sendo estudados por um “explorador” extraterrestre.
Já no filme “A chegada” (contém spoilers), alienígenas tentam se comunicar com seres humanos nas principais cidades do mundo. Conforme decifra as mensagens dos visitantes (durante o processo de aprendizado de uma nova linguagem), a linguista Louise Banks tem sua percepção sobre o tempo alterada. Para ela, passado, presente e futuro passam a acontecer “ao mesmo tempo”. Dessa forma, ela consegue, de fato, entender e se comunicar melhor com os alienígenas, além de repassar a mensagem decodificada por ela aos líderes globais.
Os exemplos de “Tunguska” e de “A chegada”, embora coloquem a importância do sentido da visão na descoberta e decodificação de mensagens entre terráqueos e extraterrestres, inovam nas experiências sensoriais e na importância do afeto (podemos discutir melhor sobre o profundo significado dessa palavra em outro texto). Essas histórias empolgantes e emocionantes são capazes de inspirar jovens a seguirem carreiras científicas (e renovar os ânimos de cientistas que, como eu, já estão na estrada há certo tempo).
De fato, a ciência convencional só tem a se beneficiar do uso de sentidos adicionais, como audição e tato. Essa exploração sensorial pode tanto promover a acessibilidade e maior inclusão, como também ajudar a evitar os equívocos inerentes à interpretação exclusivamente visual dos dados (potencializando mais descobertas).
A astrônoma Diaz Merced (União Astronômica Internacional – IAU) é pioneira na técnica da sonificação. Essa abordagem pode ser aplicada na investigação sobre habitabilidade de exoplanetas (veja também vídeo de habitabilidade galáctica e exoplanetas), por exemplo. As interações de raios cósmicos e solares de alta energia com o campo magnético ou a atmosfera dos exoplanetas resultam em diferentes flutuações de sinais que podem ser captados e escutados todos ao mesmo tempo por meio da sonificação. Na conversão visual convencional desses sinais, os astrônomos separam diferentes componentes em muitos gráficos, em que alguns ruídos e pequenas flutuações se perdem. Em tempo, Diaz Merced perdeu a visão aos vinte anos de idade.
Eu quase ia me esquecendo de retomar aqui a última parte da aula que ministrei na fatídica sexta-feira de 2017. Paramos na “Revolução Marinha do Mesozoico (RMM)” (doi:10.1017/S0094837300005352), enquanto eu via “pontinhos de luz”. A RMM foi um momento marcado pelo aumento de predadores que exerceram poderosas pressões de seleção sobre suas presas, que responderam adaptativamente da mesma forma.
Traduzindo em uma “linguagem” mais simples: os predadores se tornaram cada vez mais especializados em predar, enquanto as presas ficaram muito boas em evitar serem devoradas. Uma verdadeira corrida armamentista! Os paleontólogos têm relacionado a RMM a mudanças ambientais (talvez mudanças importantes na química dos oceanos) que permitiram estilos de vida de maior custo energético. Então, enquanto alguns caranguejos podiam investir em garras mais “pinçudas”, alguns gastrópodes podiam se defender com conchas mais “espinhudas”.
Certa vez, meu amigo Rafael Casati foi me visitar. Nós saímos para beber em um bar de Sorocaba. Todas as vezes que estou pronta para sair, meu cãozinho Gregório entende que vai junto. Ele vai atrás da coleirinha de passeio dele, abocanha e traz pra mim. Quando o objetivo não é “a hora do passeio do Greg”, eu acabo ficando com o coração apertado e saindo meio culpada.
O Rafa viu a cena e disse: “Vai lá… passeia uns minutinhos com ele antes de a gente sair!” Ele olhou para uma lousa grande que tenho na parede da minha sala: “Vou aproveitar pra desenhar alguma coisa aqui rapidinho…” Quando eu voltei, ele havia desenhado o que ele chamou de “amonoide psicodélico” (uma concha linda em espiral com várias combinações de cores e pontilhados que não existem naturalmente).
Quando saímos, contamos histórias engraçadas, relembramos os tempos da pós-graduação e, inevitavelmente, falamos sobre paleontologia. Ele me mostrou a foto da proteção de tela do celular dele, uma concha de Murex pecten, e me contou que Geerat Vermeij (paleontólogo da Universidade da Califórnia que teve um papel fundamental na compreensão da RMM) estudou conchas de moluscos muito parecidas com essa. Essas conchas apresentam uma série de projeções (que lembram espinhos). O Rafa enfatizou que essas estruturas, mesmo tão delicadas, expandem a área da concha e dificultam a captura e a manipulação de predadores muito habilidosos, como os caranguejos. Eu jamais teria enxergado isso. Aposto que poucos paleontólogos teriam. Mas Vermeij, cego desde os três anos de idade, ofereceu brilhantes explicações para a biologia evolutiva com base em descrições feitas a partir do tato na ponta de seus dedos.
Também estou devendo o desfecho da minha cegueira temporária. Eu cheguei a passar por uma cirurgia exploratória (em busca de um verme, que não existia, no meu olho). Também tomei um forte vermífugo para matar esse mesmo verme imaginário (o que me rendeu fortes dores no estômago e algumas horas no “troninho”). Até que, no quinto oftalmologista consultado, depois de descartar a possibilidade de câncer no olho, fui tratada para uma doença rara e benigna (MEWDS) que acomete mulheres jovens que passaram por quadros virais (no meu caso, uma gripe “mal curada”). Eu aprendi o valor da frase “leva o casaaaaco” sempre proferida pela minha mãe. Recuperei parte da visão do olho afetado, e o outro passa bem.
Sobre o “amonoide psicodélico” que o Rafa desenhou na minha lousa… nunca vou perguntar o que ele quis comunicar com as combinações de cores e proporções que ele escolheu. E a minha interpretação, guardo para mim. A arte afeta cada ser humano de uma forma.
Tomara que um dia possamos perceber exploradores curiosos entre nós. Torço para testemunhar a descoberta de vida além da que existe no nosso planeta (não importa quais sentidos tenhamos que usar para isso… desde que todos possam fazer parte do momento). E ouso me perguntar se isso vai acontecer antes ou depois de formigas notarem o quão profundamente podemos observá-las.