Texto de autoria de
Mirian L. A. Forancelli Pacheco
UFSCAR, Sorocaba, Brasil
Sobre como a vida é capaz de transformar profundamente um planeta
Prainha do Tamanduá, 2009
Depois de mais de três horas de viagem dentro da van do IGc/USP, estávamos quase chegando a Santa Rosa do Viterbo. Alguns poucos alunos de pós-graduação (em sua maioria geólogos) cursavam a disciplina do professor Thomas Fairchild, e eu era uma das poucas biólogas perdidas por ali.
Eu sabia que estávamos perto de São Simão quando avistei a entrada da “prainha” do Tamanduá. Essa prainha é abastecida por um rio que carrega o mesmo nome e é onde os simonenses (e até mesmo o pessoal de Ribeirão Preto e arredores) curtem o verão como uma alternativa às longas viagens para o litoral paulista. Desde criança, eu escutava várias histórias sobre a infância do meu pai e tios brincando na prainha e jogando futebol no campinho do Tamanduá.
“Saudades do meu pai…”. Percebi que em menos de 20 minutos estaríamos em Santa Rosa. Sacudi a cabeça para voltar à realidade e foquei minha atenção nas leituras. Como eu era uma novata na paleontologia (com apenas alguns poucos meses como doutoranda), eu gostava de me preparar bem para os campos. Sempre fazia uma revisão dos estudos sobre o tema do campo para tentar me antecipar e “correr atrás do prejuízo” que é ser uma bióloga no meio de vários geólogos. Fora isso, eu também tentava compensar minhas deficiências cursando disciplinas na graduação como ouvinte, e me afundando em leituras sobre conhecimentos básicos em áreas específicas da geologia (faço isso até hoje).
A van estacionou perto de uma cerca. Fui enfiando os papéis dentro da mochila, ao mesmo tempo que tentava localizar os tais estromatólitos gigantes que iríamos estudar. O professor Thomas colocou o chapéu e soltou seu famoso: “vamos, cambada!”
Pasto, rocha e mais pasto...
Iríamos passar a tarde observando fósseis no campo. Toda a dinâmica de trabalho com geólogos era muito nova para mim. Passei a graduação aprendendo a analisar coisas vivas (ou, pelo menos, coisas que haviam morrido há pouco). Depois, no mestrado, fui estudar a alimentação das sociedades humanas na Pré-história. O cardápio das pessoas em questão não era mais antigo que 25 mil anos. Eu me sentia bem à vontade identificando fragmentos de ossos e conchas (caso alguém tenha curiosidade sobre zooarqueologia: Zooarqueologia dos sítios arqueológicos Maracaju 1, MS e Santa Elina, MT).
Agora, eu estava pisando em um ambiente de mais de 250 milhões de anos (para saber um pouco mais sobre o tempo geológico, veja meu outro texto neste blog "O peixe de pedra"). Nada para mim era óbvio ou confortável: o vocabulário dos geólogos, o protocolo de trabalho, a escala de tempo e os estromatólitos. Claro: os estromatólitos.
Eu me senti patética quando o professor Thomas começou a mostrar e descrever várias pequenas estruturas, atribuídas à ação de microrganismos, num imenso bloco de rocha, que todos (exceto eu) estavam reconhecendo como um dos estromatólitos gigantes de Santa Rosa. Na minha percepção, tudo era apenas um monte de rochas amontoadas. Uma imensa paisagem de afloramentos rochosos cobertos por pasto. E eu não tinha conhecimentos suficientes que chegassem a compor uma dúvida razoável. Eu estava apenas me ocupando em tentar não parecer tão idiota na frente dos meus colegas.
Esses foram os primeiros dez minutos de campo mais longos da minha vida.
Revelando os gigantes de pedra e um cemitério inesperado
Eu respirei fundo e tirei algumas anotações de dentro da mochila. “Vamos, lá Mírian Liza! Você já viu pedaços de estromatólitos em laboratório. Já leu sobre isso…”. Em um dos artigos impressos que eu trazia comigo estava escrito “Na porção setentrional paulista, na região de Santa Rosa de Viterbo, ocorre um campo de estromatólitosgigantes, formados em condições praianas durante o Permiano Médio, onde as formas dômicas podem alcançar mais de 3 metros de altura”. Então meus olhos começaram a ajustar a perspectiva para procurar por domos de mais ou menos três metros na paisagem. E foi bem fácil identificar vários deles quando eu enxerguei o primeiro (Figura 1) bem na minha frente. Enquanto isso, o professor Thomas pegava seu martelo geológico para explorar algumas amostras com a turma.
Em um dado momento, o professor parou de martelar e chamou nossa atenção para uma amostra em que era possível observar uma sequência de camadinhas (que também chamamos de estruturas laminares) bem finas (veja os 3 primeiros minutos desse vídeo e você vai entender: A complexidade da vida (multicelularidade)). Ele pingou uma solução bem fraca de ácido clorídrico no fragmento de rocha, que efervesceu. Thomas olhou para a turma e perguntou: “o que isso significa?” Temos minerais carbonáticos! A situação estava agora bem mais confortável para mim. Comecei a conectar as informações dos fragmentos de estromatólitos que eu havia observado em aula prática anteriormente, com essas amostras frescas coletadas em campo.
A turma se dividiu e começou observar os domos, por vezes martelando para melhor exposição de amostras frescas e por vezes fazendo anotações. Eu seguia tentando desenhar e esquematizar os domos: primeiro em escala macroscópica e depois destacando alguns detalhes, como a espessura das laminações, alguma variação de tamanho entre elas e outras características que pudessem chamar atenção.
Entre os domos estromatolíticos, começamos a encontrar vários fragmentos de ossos de algum tipo de animal que provavelmente viveu no mesmo período que esses estromatólitos. E eu me senti ainda mais empolgada e confiante porque os ossos eram “a minha praia”. Eu havia lido previamente que os estromatólitos de Santa Rosa não eram famosos apenas por serem gigantes, mas por guardarem preservados entre seus domos vários fragmentos de ossos de mesossaurídeos. Esses répteis marinhos viveram há mais de 270 milhões de anos no grande mar do Irati (para saber mais: Mesosaurs: Sea Dragons of the Permian e A Biodiversidade da Estação Ecológica de Angatuba).
Enquanto coletava amostras e reconhecia pedaços de costelas, vértebras e alguns membros esparsos e preservados nas rochas, eu me perguntava (e depois também para o professor Thomas) como aqueles mesossauros vieram parar ali e por que raios parecia que eles haviam sido triturados antes de se fossilizarem? (Figura 2)
É claro que eu não fui a primeira a fazer essa pergunta desde a descoberta dessas estruturas. O professor Thomas nunca ofereceu respostas prontas para nenhum de nossos questionamentos. Ele sempre respondia nossas perguntas com outros questionamentos que geralmente chamavam atenção para coisas que ainda não havíamos notado em uma amostra ou texto. E quando oferecíamos uma resposta, ele prontamente dizia “Você apostaria a sua vida nisso?” Isso afiava nossas mentes e nos passava a impressão honrosa de que nós havíamos chegado sozinhos a uma boa resposta para uma pergunta supercomplicada. Era como uma epifania guiada. E quando me tornei docente passei a adotar essa prática para “torturar” meus alunos.
Por volta de 17:30, seguimos para o hotel para fazer o check in, jantar e discutir as observações do primeiro dia de campo.
Mãe, você não vai acreditar onde estou!
Fui para meu quarto e telefonei para uma pessoa em Campo Grande:
“Mãe! Você não vai acreditar onde estou! Em Santa Rosa do Viterbo. Pertinho da terra do pai!!!”
“Você que não vai acreditar Liza: seu pai está em São Simão! Foi visitar o tio Nino. Em que hotel você está? Vou falar pra ele ligar aí.”
“Tá bom mãe. Mas depois das 19:00 vamos jantar e então trabalhar. Fala pro pai que eu vou ficar no quarto até essa hora.”
Eu estava esperando a ligação do meu pai. Mas, cerca de meia hora depois, apareceram no hotel: meu primo, meu tio e meu pai. Eu fiquei em um misto de alegria e desconforto (porque o professor Thomas havia acabado de anunciar a hora em que iríamos começar a discutir). Olhei para o professor e meio que nos comunicamos pelo olhar na seguinte mensagem: “hoje não vamos trabalhar à noite”. Corri para abraçar meu pai. Nos sentamos no saguão do hotel, incluindo o professor. Os alunos dispersaram. Eu ainda estava meio desconfortável porque o foco da noite deixou de ser “Santa Rosa e seus fósseis” e passou a ser “Mírian Liza e sua família”. Mas eu estava mesmo muito feliz em ver meu pai. Eu estava com muitas saudades e foi um incrível golpe de sorte ele estar por ali.
De fato, a visita durou muito pouco. Em menos de 15 minutos, meu pai se levantou:
“Filha, eu vim aqui só pra ver sua carinha. Eu sei que vocês estão trabalhando e não vamos atrapalhar. Mas venha aqui fora um pouco que eu preciso trocar uma palavrinha com você”.
Atravessamos o saguão e fomos direto para a entrada do hotel, apenas meu pai e eu. Meu tio e meu primo andaram mais devagar enquanto conversavam com o professor Thomas. Longe do olhar de todos, meu pai me deu um abraço apertado, encheu os olhos de lágrimas e me entregou um “bolinho” de dinheiro:
“Toma, filha. Gasta no que você precisar. Tenho muito orgulho de você. Te amo. Vamos, Nino!”
Então eles seguiram para São Simão. Eu limpei as lágrimas e entrei no hotel.
Professor Thomas combinou com a turma às 7:00 para o café da manhã.
Mas afinal o que são os estromatólitos? E como os ossos foram parar lá?
Logo de manhãzinha já estávamos todos reunidos novamente em campo, discutindo as observações do dia anterior. Escutei um colega geólogo comentando:
“Acho lindos os ambientes desolados assim. Mas sem essa parte biológica. Só o ambiente mesmo.” Dois colegas concordaram com a cabeça.
Eu fiquei pensando: “Um ambiente sem vida? Nem consigo imaginar. Depois que consegui enxergar e compreender os domos de estromatólitos ontem, fico pensando em como seria esse exato local se a vida não o tivesse modificado há mais de 260 milhões de anos. Com certeza testemunharíamos outra paisagem.”
O professor Thomas foi guiando nossas discussões e começamos a elaborar hipóteses e explicações que ajudaram a reconstituir um ambiente cheio de vida a partir do que estava gravado nas rochas e fósseis que estávamos explorando.
Podemos vivenciar em nossas mentes um ambiente marinho passado rico em atividades biológicas nas rochas da Formação Irati de Santa Rosa do Viterbo. Há mais de 260 milhões de anos, o mar do Irati ocupava mais de um milhão de quilômetros quadrados, com cerca de 200 metros de profundidade. Era um mar raso e límpido. Dentre outras pistas geológicas, também sabemos disso porque os estromatólitos são estruturas formadas por tapetes de microrganismos (biofilmes) que realizam fotossíntese (e por isso precisam de águas rasas e limpas que permitam a passagem da luz do Sol). O que explica as finas laminações sobrepostas dos estromatólitos é a constante migração, em busca de luz, desses organismos fotossintetizantes rumo à superfície das camadas de carbonato e outros finos grãos de sedimentos, que são depositados durante as variações do nível da água (Figura 3).
Enquanto seres microscópicos rumavam à luz, impulsionando o que mais tarde se tornariam gigantes domos estromatolíticos, os mesossauros exploravam as límpidas águas do mar do Irati, alimentando-se de pequenos crustáceos e outros organismos disponíveis. Quando esses répteis morriam, suas carcaças eventualmente afundavam e seus ossos se concentravam entre os domos dos estromatólitos, ficando à mercê da influência dos movimentos da água. Isso resultou na desarticulação e na fragmentação de seus esqueletos.
A vida na Terra: uma história de reciprocidade
Os estromatólitos de Santa Rosa são uma amostra do que era paisagem biológica na Terra durante os primeiros três bilhões de anos da história da vida. Três bilhões de anos na história de um planeta é muita coisa.
As “condições para a vida” se resumem a uma palavra: energia. A primeira fonte de energia para a vida em nosso planeta foi a geoquímica: os compostos do manto e do magma disponibilizados em condições específicas de temperatura, pressão etc.
Em seguida, há cerca de 2,5 bilhões de anos, o oxigênio deixou suas marcas nas rochas (veja isso em BIF). As populações ou comunidades de microrganismos que passaram a aproveitar a luz do Sol e realizar fotossíntese se proliferaram. E como resultado, o oxigênio começou a se acumular na atmosfera e nos oceanos, modificando profundamente o ambiente…. e a vida. Muitos organismos entraram em extinção, enquanto outros foram capazes de aproveitar o oxigênio (de forma muito eficiente) em suas atividades metabólicas.
O último grande evento de oxigenação global atingiu as partes mais profundas dos oceanos (há mais ou menos 580 milhões de anos). A isso seguiu-se o surgimento dos animais no registro fóssil. O oxigênio possibilitou os esqueletos duros, a reprodução sexuada, a movimentação ativa e animais comendo outros animais. Essas atividades são muito custosas, logo seriam inviáveis na ausência desse composto.
Há cerca de 542 milhões de anos, vermes microscópicos começaram a revolver o os sedimentos (que também chamamos de substratos) oceânicos, antes selados por esteiras microbianas. Atrás dos pequenos vermes vieram animais maiores que começaram a utilizar os substratos como proteção contra predadores e aproveitar uma nova oportunidade de habitação. Esses animais romperam a estabilização das esteiras microbianas e oxigenaram os sedimentos: era a Revolução Agronômica (Figura 4) (para saber mais, confira o capítulo 10 do livro Astrobiologia).
Esse é um resumo do cenário das expansões de energia em nosso planeta: (1) a vida emerge em um contexto geologicamente ativo e é capaz de aproveitar a energia geoquímica; (2) um grupo de organismos passa a utilizar a luz e produzir oxigênio; (3) o oxigênio viabiliza organismos grandes, exploradores ativos e mais famintos; (4) esses organismos começam a aproveitar os sedimentos do substrato oceânico como moradia e proteção contra organismos ainda mais famintos; (5) boa parte dos tapetes microbianos, que antes tinham as relações mais íntimas com o substrato são irrompidos e danificados nesse processo.
Esteiras microbianas e estromatólitos existiram ao longo de todo o tempo geológico (inclusive atualmente), mas ficaram mais restritos a partir de 542 milhões de anos atrás. É a vez de os animais serem os novos engenheiros de ecossistemas. Em uma dança cíclica de reciprocidade, o ambiente apresenta condições para a vida que muda o ambiente que muda a vida que muda o ambiente…
Os gatilhos para a vida em outros mundos
Volto a pensar nas palavras do meu colega geólogo, naquele campo em Santa Rosa: “Acho lindos os ambientes desolados assim. Mas sem essa parte biológica.” “Desolação” tem muitos sinônimos. E ela foi considerada magnífica por Buzz Aldrin quando o astronauta viu a superfície da Lua pela primeira vez.
Há pouco mais de três bilhões de anos, os microrganismos começaram a interagir intimamente com diversos tipos de substrato na Terra. Essas interações resultaram na síntese de uma infinidade de minerais, facilitaram o intemperismo, a disponibilização de nutrientes, além da liberação de gases que moldaram de forma irreversível a vida em nosso planeta.
Também há pouco mais de três bilhões de anos, Marte apresentava uma atmosfera menos rarefeita e água líquida na superfície. Em um lugar mais distante em relação ao Sol, duas luas de Júpiter nos fazem pensar sobre “energia” e “condições para a vida”. Io é o ponto de mais expressiva atividade vulcânica no Sistema Solar, enquanto Europa ainda pode esconder um misterioso oceano líquido, em meio a um turbilhão de atividades de gêiseres, abaixo de espessas camadas de gelo.
Vários mundos de nosso Sistema Solar podem ser considerados desolados e, ao mesmo tempo, magníficos. O registro geológico da Terra também faz parte disso. As atividades contínuas e graduais de microrganismos moldaram os estromatólitos gigantes na paisagem desolada de Santa Rosa do Viterbo. Uma magnífica combinação entre os trabalhos da vida, do ambiente e do tempo.
Dedicado aos gigantes
Por mais óbvios que possam parecer, alguns gigantes demoram para serem reconhecidos e compreendidos. Eu precisei de muito estudo para compreender e enxergar os estromatólitos gigantes de Santa Rosa (ainda sigo trocando ideias sobre o tema com minha amiga Flavia Callefo). Também precisei de muita sabedoria para assimilar o empolgante método de ensino do professor Thomas (aquele que dá a impressão de que aprendemos sozinhos, quando na verdade somos guiados… e “torturados”). E, por fim, precisei de muito amadurecimento para entender o discreto gesto do meu pai ao me chamar num canto separado para me dar dinheiro.
Em todos os casos o tempo foi fundamental na revelação da grandeza.