Texto de autoria de
Roberta Vincenzi
Laboratório de Astrobiologia, Universidade de São Paulo, Brasil
Não foi pequena a repercussão gerada pela Mars2020, a mais nova missão da NASA que levou o rover Perseverance ao planeta vermelho. E não é para menos, uma vez que dentro de seus vários objetivos, essa missão irá buscar por evidências de vida em Marte. A jornada do Perseverance teve seu início em julho de 2020, chegando a Marte em fevereiro de 2021. No entanto, a história da busca por evidências de vida em Marte data de muito antes. A primeira, por mais incrível que pareça, data de mais de 40 anos atrás. Me refiro à missão Viking que, com muita ousadia, levou três experimentos biológicos em uma das primeiras tentativas da história de pousar no planeta vermelho.
A missão Viking foi lançada em 1975 e pousou em Marte no ano seguinte, em 1976. Ela era separada em duas partes: Viking 1 e Viking 2. Cada uma tinha dois componentes principais: um orbitador, que estudaria o planeta em sua órbita, e um aterrizador, realizando estudos na superfície de Marte, incluindo os experimentos biológicos. Os aterrizadores contavam com uma coletânea de equipamentos para tentar entender a composição do planeta, além de os três experimentos biológicos que serão descritos a seguir.
Experimento de Troca de Gases
O experimento analisou os gases liberados por uma amostra de solo marciano incubada em uma câmara com nutrientes orgânicos e inorgânicos. Foram monitoradas as concentrações de O2, CO2, N2, H2 e CH4. A hipótese testada era a de que, se existissem organismos vivos na amostra, eles iriam metabolizar os nutrientes fornecidos e liberar algum desses gases no processo (assim como nós expiramos CO2 quando metabolizamos nossa comida). O resultado do experimento foi a identificação de O2 liberado pela amostra. No entanto, o mesmo aconteceu com o controle que foi aquecido a 145°C matando todos os organismos vivos que pudessem estar ali. Assim, o controle não deveria ter nenhum sinal de metabolismo. Por fim, o experimento foi inconclusivo.
Experimento de Labed Release (LR)
Neste experimento, uma solução de nutrientes com 14C foi adicionada a uma amostra de solo marciano em um sistema fechado. Esse tipo de carbono marcado não ocorre em quantidades significativas naturalmente. A ideia era então acompanhar a liberação de CO2 pela amostra e detectar a presença de 14CO2, que só poderia ser resultado da metabolização do 14C presente nos nutrientes. Se isso ocorresse, seria um sinal de que organismos estariam utilizando os nutrientes adicionados à amostra e liberando CO2 no processo. Ou seja, mais uma evidência de vida por meio de metabolismo. Os primeiros resultados mostraram a presença de carbono marcado no CO2. Em adições seguintes da mesma solução marcada, mas envolvendo aumento de temperatura a 160°C (situação na qual se esperaria a esterilização da amostra), não foi detectado o carbono marcado nos gases resultantes. Esses dois resultados juntos contribuíram, para uma interpretação consistente com a presença de organismos metabolizando em solo marciano. Assim, o resultado desse experimento pode ser considerado positivo.
Experimento de assimilação de carbono (pirólise):
Luz, água e uma atmosfera composta por CO e CO2 foram introduzidas em uma câmara experimental com amostras de solo marciano. Os carbonos presentes nos gases eram 14C, ou seja, estavam marcados, assim como no experimento anterior. A hipótese era a de que a presença de vida na amostra de Marte poderia fixar o carbono presente na atmosfera em biomassa, assim como ocorre no planeta Terra com os organismos autotróficos. Nesse experimento, a amostra foi incubada com os gases marcados por 120h. A seguir, os gases presentes foram removidos e a amostra foi submetida à pirólise, procedimento no qual a temperatura é aumentada a mais de 600°C permitindo a detecção de carbono marcado. O resultado apontou baixas quantidades de 14C detectados no experimento. Apesar de as concentrações detectadas serem muito menores do que aconteceria no nosso planeta, esse resultado poderia ser interpretado como evidência de vida. Ou seja, o resultado desse experimento foi inconclusivo.
Portanto, o que temos dos experimentos da missão Viking são resultados não muito consistentes, apesar de apontarem para uma possível explicação baseada na presença de vida no planeta vermelho. Essa interpretação é mais fortemente embasada pelo experimento de marcação de carbono da solução de nutrientes, que chamamos anteriormente de LR. No entanto, quando se observa o panorama geral, com todos os experimentos e, principalmente, olhando para o contexto químico do ambiente de Marte, essa interpretação é gravemente questionada.
Como já mencionado acima, os aterrizadores traziam diversos equipamentos, dentre eles estava a cromatografia de gás – espectrômetro de massas (GC-MS), que tinha como objetivo entender o ambiente marciano, incluindo a tentativa de detectar matéria orgânica. Acontece que o resultado da GC-MS foi negativo para a presença de matéria orgânica nas amostras de solo do planeta vermelho. Juntando tudo isso, é muito difícil concluir que a explicação para os resultados dos experimentos biológicos da Viking é a presença de vida em Marte uma vez que não há presença de matéria orgânica. Lembrando aqui que toda forma de vida que conhecemos é baseada em matéria orgânica e todos os 3 experimentos realizados na missão foram desenhados pensando na vida que conhecemos aqui na Terra (leia também "Afinal, o que é vida?"). Em outras palavras, como pode ter vida como conhecemos num local que não tem matéria orgânica?
Além da ausência de matéria orgânica e alguns resultados inconsistentes (como o controle do experimento de troca de gases ter dado positivo quando não deveria), também havia um importante problema a se considerar quando estamos falando de bioassinaturas: não era possível excluir a hipótese de que os resultados observados são explicados por compostos oxidantes presentes no solo. Portanto, se olharmos para o cenário total, a conclusão de que os resultados apontam para a presença de vida pode ser questionada. E de fato foi.
A hipótese da explicação abiótica ganhou ainda mais força após os resultados da missão Phoenix em 2008. O aterrizador detectou a presença de sais de perclorato, compostos oxidantes que estariam no solo marciano. Com essa nova descoberta, os resultados da missão Viking puderam ser reinterpretados. Inclusive foram realizados experimentos na Terra simulando os procedimentos realizados pela missão Viking, mas levando em conta a presença de percloratos e então comparando os resultados obtidos aqui e em Marte. Por fim, a presença desses sais permitiu explicar não só as inconsistências encontradas nos experimentos marcianos como também contribuir para a explicação não biológica daqueles resultados que pareciam indicar presença de vida.
Por outro lado, a detecção de percloratos em Marte também levou a novas interpretações dos resultados da GC-MS, que originalmente indicavam ausência de matéria orgânica em Marte. Apesar desse resultado ter contribuído para questionar as possíveis evidências de vida no planeta vermelho, o fato de a Viking não ter detectado matéria orgânica em Marte é no mínimo estranho. Isso porque sabemos que grandes quantidades de matéria orgânica chegam nos planetas por impactos de meteoritos. Isso aconteceu com a Terra e com Marte também. Dessa forma, seria de se esperar que Marte tivesse quantidades consideráveis de matéria orgânica, mesmo na ausência de vida no planeta. A descoberta de percloratos na superfície de Marte jogou alguma luz nesse estranho resultado. Apesar de percloratos não serem capazes de oxidar matéria orgânica nas condições de temperatura encontradas em Marte, o fato de aquecer a amostra de solo marciano contendo percloratos (como aconteceu nos experimentos realizados pela missão Viking) poderia provocar a oxidação e consequente degradação de orgânicos pressentes. Inclusive, em experimentos posteriores aqui na Terra simulando essas condições, foi possível chegar ao mesmo resultado obtido pela GC-MS da missão Viking, fornecendo fortes evidências de que não seria possível excluir a presença de matéria orgânica em Marte. Anos mais tarde, o rover Curiosity detectou matéria orgânica no planeta vermelho solo marciano, lavando a reinterpretação dos resultados da Viking sobre a possibilidade de vida no local.
Resumindo, após anos de novas pesquisas e dados do planeta vermelho, os cientistas foram capazes de entender melhor os resultados de busca de vida em Marte. A conclusão atual é de que muito provavelmente existe uma explicação abiótica para os dados obtidos na missão Viking, mas que, por outro lado, também não podemos excluir a possibilidade de vida no planeta, uma vez que existem evidências de matéria orgânica. Dos três experimentos realizados, o LR é o que mais levanta dúvidas sobre as interpretações gerais, ficando aberta a possibilidade de ter sido identificado atividade biológica na amostra analisada. No entanto, ainda não é possível excluir a causa abiótica. Como diria o grande Carl Sagan, “afirmações extraordinárias requerem evidências extraordinárias” e, infelizmente, isso a Viking não conseguiu apresentar.
Apesar de os resultados não serem os mais desejados (afinal, quem em sã consciência não ficaria animado com evidências de vida em outro planeta!?), a missão Viking foi, e continua sendo, de grande importância para a astrobiologia e a busca de vida em outro planeta. Ela nos ensinou lições muito importantes, ressaltando como é essencial saber todo o contexto ao redor da pergunta que estamos querendo responder para que seja possível interpretar o resultado corretamente. Ou seja, nos mostrou que é necessário conhecermos o ambiente do planeta e entender como ele funciona. Apenas dessa forma será possível desenhar experimentos que de fato consigam excluir o componente abiótico e provar, sem sombras de dúvida, a explicação biótica do fenômeno analisado. Tal importância teve essa lição que, desde então, todas as missões para Marte tiveram como foco entender o ambiente do planeta. Agora, com novos dados e todo o conhecimento construído até o momento, a humanidade, através do Perseverance e de diversas outras missões programadas para os próximos anos, retorna à pergunta que não se cala durante toda a nossa história: existe vida fora da Terra? Aguardem os próximos capítulos...