Texto de autoria de
Ana Paula Schiavo
Programa de Pós-Graduação em Bioquímica, Universidade de São Paulo, Brasil
97,83% das famílias brasileiras têm geladeira, de acordo com o censo do IBGE de 2015. Se você, assim como eu, já teve que passar alguns dias sem geladeira, você sabe por quê. Quando a minha quebrou, demorou alguns dias para o suporte técnico vir até minha casa e nesse intervalo de tempo perdi vários alimentos, de margarina a carnes congeladas. Eu, como boa universitária morando sozinha, nem tinha tanta coisa na geladeira e freezer (minha alimentação é bem menos saudável do que eu gostaria de admitir), mas ainda assim eu tinha muito mais itens do que poderia comer em 2 ou 3 dias. Até aquele momento nunca tinha parado para pensar como esse eletrodoméstico é essencial para a vida que nós, humanos, levamos atualmente.
Nossa capacidade de conservar alimentos é absolutamente essencial para nossa sobrevivência; quantas pessoas você conhece que apenas se alimentam do que colheram, abateram, caçaram ou coletaram no dia? Aposto que nenhuma. Mesmo alguém que só compra vegetais e carnes “frescos” de mercados e hortifrutis está comendo algo que foi colhido ou abatido dias antes, principalmente nos grandes centros urbanos (que ficam longe dos locais de produção agropecuária). Mas como isso é possível? Todos nós já presenciamos um alimento que ficou “passado”, embolorou ou apodreceu, mas o que podemos fazer (e fazemos) para evitar isso?
Antes de responder isso, precisamos entender por que nossa comida estraga.
Nossos alimentos são nutritivos (que surpresa!), ricos em carboidratos, gorduras, proteínas e outros compostos orgânicos energéticos. A surpresa talvez seja que não somos apenas nós, humanos, que gostamos (e precisamos) ingerir esses compostos. Vários micro-organismos também precisam. E qual lugar melhor que a maçã suculenta na sua fruteira para uma bactéria ou fungo fazer as refeições e crescer? Isso mesmo, dizemos que um alimento está estragado quando uma grande quantidade de micro-organismos cresce nele. Esses seres vivos microscópicos comem os nutrientes na nossa comida para conseguir energia e excretam vários subprodutos que às vezes são tóxicos para nós. Um exemplo bem comum desse crescimento de micro-organismos é o pão embolorado. O bolor é um nome genérico dado para fungos filamentosos que não formam estruturas como cogumelos. Uma manchinha verde no seu pão tem milhões de fungos microscópicos.
Se a comida estraga pelo crescimento de micro-organismos, para conservar os alimentos precisamos impedir que isso aconteça. Existem vários métodos de conservação, mas todos têm como objetivo matar os micro-organismos ou impedir seu crescimento sem destruir os nutrientes.
Você deve estar pensando “Legal, mas e daí? Estou num blog de Astrobiologia, o que tudo isso tem a ver?” A resposta é: extremófilos. Uma das áreas de estudo da Astrobiologia é a microbiologia, especificamente de seres microscópicos chamados extremófilos. Esses seres ajudam a gente a entender os limites da vida que conhecemos. Além disso, os ambientes que encontramos em outros corpos planetários são considerados extremos para a vida aqui da Terra. (Leia também: “Habitantes do inóspito”, “Ursos d’água espaciais” e “Existe vida fora da Terra?”)
Extremófilos são seres vivos que sobrevivem em condições extremas. Mas o que define uma condição extrema? Há muitos que dizem que é uma definição antropocêntrica, ou seja, se é diferente das condições que nós vivemos, consideramos extremo. O problema é que para o ser vivo que está adaptado a viver numa condição extrema (por exemplo temperaturas acima de 60°C) vai ter muita dificuldade em sobreviver numa condição amena (20°C), então do ponto de vista desse extremófilo, as condições que nós vivemos são extremas. No entanto, podemos pensar de outra forma. Existem ambientes com mais formas de vida do que outros, tanto em quantidade quanto em diversidade (é só comparar um deserto com uma floresta tropical). Podemos dizer que ambientes com menor diversidade e menor biomassa é mais hostil a vida no geral, sendo assim um ambiente extremo.
A maior parte dos seres vivos não sobreviveria se colocados em condições extremas, ou se sobrevivessem não conseguiriam se reproduzir ou cresceriam muito lentamente. É exatamente esse efeito que é desejado na conservação de alimentos. Poderíamos, então, fazer com que nossos alimentos se tornassem ambientes extremos sem prejudicar nossa capacidade de comê-los? A resposta é sim; e é exatamente isso que fazemos desde o começo da agricultura, sem nem perceber.
Uma forma comum de conservação é a secagem ou desidratação, que consiste em retirar a água do alimento por exposição ao ar seco e ao calor (ex: uva passa). Por vezes também é adicionado sal de cozinha (NaCl), que força a água para fora da comida por osmose (ex: carne de sol). Como já foi dito no texto “Existe vida fora da Terra?”, a água é necessária para a vida, então um alimento desidratado se torna hostil e evita o crescimento de micro-organismos. No caso da adição de sal, torna o ambiente ainda mais extremo já que além da escassez de água, o micróbio teria que lidar com a pressão osmótica.
Outro método comum, principalmente na indústria, é a irradiação, que consiste em expor o alimento a radiação ionizante. Inclusive foi com o estudo dessa técnica de conservação que descobrimos um micro-organismo muito estudado na Astrobiologia, a bactéria Deinococcus radiodurans. Ela foi encontrada pela primeira vez em 1956 quando um cientista americano estava tentando entender por que sopa de tomate enlatada continuava estragando mesmo depois de receber doses altas de radiação gama (que antes acreditavam ser capaz de matar todas as formas de vida). Além de ser um dos seres vivos mais resistentes à radiação ionizante, D. radiodurans sobrevive a baixas temperaturas, desidratação, vácuo e ambientes ácidos.
Nossa querida geladeira também é uma forma de criar um ambiente extremo. Um micro-organismo é considerado psicrófilo (i.e. resistente a frio) se conseguem se reproduzir entre -20°C e 10°C. Um refrigerador pelas regras da ANVISA deve atingir no máximo 5°C, mas a maioria fica entre 1,7°C e 3,3°C. Então qualquer coisa capaz de crescer dentro de uma geladeira deve ser considerado um extremófilo! Como já falamos, extremófilos por definição são mais raros do que mesófilos (seres vivos que vivem em condições amenas), assim a maioria dos micro-organismos não vai sobreviver ou não vai crescer enquanto estiver na geladeira. Isso diminui a chance da nossa comida estragar.
Foram listados só alguns dos métodos de conservação de alimentos, mas todos eles se baseiam em transformar a comida em um ambiente hostil para micro-organismos. Sendo assim, podemos pensar que talvez alimentos processados de alguma maneira são bons lugares para os cientistas procurarem por extremófilos (talvez algum deles até consiga sobreviver em outro planeta). Em contrapartida, o estudo desses seres microscópicos por astrobiólogos talvez ajude no desenvolvimento de técnicas mais eficientes e baratas de conservação de comida, facilitando a distribuição e o acesso da população a uma alimentação saudável.