Texto de autoria de
Isabella Gaião
Laboratório de Astrobiologia, Universidade de São Paulo, Brasil
O que astrônomos do século XIX e a então autora deste texto têm em comum? Digo já de antemão que é a busca por uma resposta: existe vida em Marte?
Perguntas são primordiais na ciência; é a partir de observações feitas do mundo a nossa volta que as questões surgem, e assim, as pesquisas científicas começam. Quanto mais abrangente a pergunta, mais difícil é encontrar uma única resposta. É o que acontece quando nos questionamos se há vida no planeta vermelho, trata-se de uma pergunta que abrange diversas áreas do conhecimento e diversos fatores, de forma que cabem muitas outras perguntas dentro dela. “De que tipo de vida estamos falando?”, “qual a definição de vida?”, “em qual região marciana que buscaremos essa vida?”, “quais as condições dessa região que a suposta vida deveria lidar?”. Essas e muitas outras questões surgem quando nos questionamos sobre vida em Marte.
Essa é uma pergunta que é feita há séculos e a busca pela sua resposta vem desde aquela época até hoje. Apesar dessa minha questão principal de pesquisa ser um ponto em comum com alguns astrônomos dos séculos passados, como buscamos por essa resposta é o que coloca um abismo entre nós. A ciência evoluiu e evolui com o tempo, e com isso, a forma de se fazer ciência também muda. Hoje, conseguimos fazer uma ciência mais confiável e reprodutível graças ao método científico. Mas há algumas boas dezenas de anos atrás, o rigor científico ainda estava em construção. A ciência era mais especulativa e o método não era universal.
Foi nesse cenário que Percival Lowell teve seu primeiro contato com a possível existência de vida em Marte. O planeta já era foco dos astrônomos e entusiastas por ser de certa forma parecido com a Terra. É o planeta com superfície visível mais próximo de nós, tem a duração de um dia semelhante com o nosso, calotas polares de gelo e mudança de estações. Essas características impulsionaram o surgimento de fantasias e especulações em cima da existência de marcianos.
Em 1877, Lowell leu um anúncio de Giovanni Schiaparelli que dizia ter descoberto, por observações em luneta, “sulcos” e “acidentes retilíneos” na superfície do planeta, chamando alguns desses artefatos de “canais”. A tradução de canali do italiano (língua de Schiaparelli) para o inglês (língua de Lowell) foi feita de forma equivocada, de forma que os americanos entenderam que havia canais de origem não naturais na superfície de Marte. Essa interpretação iniciou uma busca avassaladora e nada científica por provar a existência da sociedade marciana responsável pela construção dessas estruturas.
Lowell dedicou grande parte de sua vida para observar esses canais e tentar entender a suposta civilização de Marte. Investiu todo seu tempo e muito dinheiro observando o planeta (até construiu um observatório no Arizona), desenhando os canais e escrevendo livros especulando como a vida ocorria em no planeta vermelho a partir de um único dado: os canais. Para o estadunidense, Marte ser habitado era um fato, o que ele buscava era mais indícios dessa civilização inteligente. Ele ficou tão obcecado pela vida marciana que ao invés de procurar todas as explicações possíveis para o fenômeno observado, ele interpretava os dados de forma a concordar com sua hipótese.
Alguns astrônomos apoiavam Lowell, outros desdenhavam e refutavam seu trabalho. Afinal, ele queria tanto que a civilização de Marte fosse real que passou a acreditar nessa verdade e observar coisas que eram irreais. A população marciana, segundo ele, era mais velha e mais sábia que a terrestre. Havia desenvolvido uma rede de canais que coletavam a água congelada nas calotas polares e irrigavam todo o planeta. Realmente as calotas polares de Marte mudam de tamanho durante o ano, mas várias hipóteses devem ser testadas buscando se encontrar uma verdade. Esse derretimento, sabemos hoje, está muito mais relacionado com as mudanças de temperatura devido às estações do ano.
Mais tarde, com as missões que levaram robôs para o planeta vermelho, foi percebido que não existem esses famosos e tão esperados canais. Muito provavelmente o que Schiaparelli, Lowell e outros astrônomos viam eram apenas artefatos gerados pela baixa qualidade dos equipamentos da época.
Se hoje em dia surgisse alguém como Lowell, trazendo afirmações especulativas e ilusórias, seu trabalho não seria considerado científico. E é isso que me distancia tanto de Percival Lowell e de seus apoiadores, afinal a pergunta que movia o trabalho deles ainda está em aberto e é a pergunta que move minha tese de doutorado. Mas para encontrar essa resposta eu devo me atentar a todas as outras inúmeras perguntas e explicações que surgem quando indagamos se Marte é habitado.
A ciência evoluiu e, hoje, temos um método científico universal que garante a reprodutibilidade e confiabilidade do que está sendo pesquisado e publicado. Com passos bem pequenos e bem menos ousados, eu tento entender se microrganismos aqui da Terra poderiam sobreviver às condições extremas de Marte. E é assim que fazemos ciência, trabalhando em conjunto com outros pesquisadores para, quem sabe, chegarmos a uma resposta das perguntas que nos cercam, mesmo que seja uma resposta negativa. Minha pesquisa é apenas um tijolinho desse gigantesco arranha-céu que é a busca por vida em Marte.
Lowell se deixou levar pelas suas crenças, mas de certa forma contribuiu muito para a ciência. Impulsionou o desenvolvimento de uma área de pesquisa para responder essa fatídica pergunta. Hoje, a Astrobiologia é uma ciência que entre outros pontos, busca por vida fora da Terra de forma científica. Então de certa forma os erros motivam os acertos e nos fazem refletir, como pesquisadores, como a ciência deve ser feita. Afinal, já dizia o grandioso astrônomo Carl Sagan: “alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias”.