Texto de autoria de
Roberta Vicenzi
Laboratório de Astrobiologia, Universidade de São Paulo, Brasil
O grande interesse que a humanidade manifesta pelo planeta vermelho não é algo novo. Na verdade, no que se refere à comunidade científica, estamos colocando nossos pés robóticos em Marte desde a década de 70, com o programa Viking (vide texto aqui no blog). Desde então, inúmeras missões não tripuladas vêm sendo enviadas ao nosso planeta vizinho mais famoso. Apesar do significativo avanço que essas missões remotas e in situ (orbitadores, rovers e landers) nos proporcionam, nada se compara a grandiosa possibilidade de estudar amostras marcianas ao vivo, em carne e osso, dentro dos nossos preciosos laboratórios. Ainda mais se a gente estiver falando de astrobiologia. Imagina só se a gente pudesse estar no lugar do Perseverance hoje, coletando aquelas amostras de solo e rochas na cratera Jazero, local onde há eras desaguava o delta de um rio. No entanto, uma missão tripulada até Marte não é algo que vai acontecer tão cedo. Porém, outra possibilidade, um pouco mais tangível, existe. Não só existe pairando no imaginário dos mais sonhadores cientistas, mas está sendo colocada em prática enquanto você está lendo esse texto.
Estamos falando de missões de retorno de amostras de Marte para nosso querido planeta Terra. Essa opção é mais tangível do que mandar seres humanos para Marte por alguns motivos, uns muito simples, outros mais complexos. O primeiro é que a Terra é cheia de laboratórios, até aqui no Brasil (pasmem!), apesar do grande esforço do presidente Bolsonaro em acabar com todos eles nos últimos anos. E isso já é uma tremenda vantagem, uma vez que hoje temos em Marte um total de zero laboratórios e pouquíssimos equipamentos (tanto para processar e analisar essas amostras, quanto para nos manterem vivos). E mandar esses materiais para outro planeta ou construir estruturas que garantam a permanência de seres humanos em Marte não é simples e muito menos barato. Também tem o fato de não sabermos muito o que acontece com a gente quando porventura decidimos fazer longas viagens pelo espaço sideral, enlatados em pequenas espaçonaves flutuando no vazio do universo. Por fim, também não existe um consenso hoje na comunidade científica sobre a questão ética de se pisar num planeta sem saber se este já é habitado. Mas isso é um assunto para outro texto. O ponto é que hoje é muito mais fácil pensarmos em trazer essas tão desejadas amostras até nós, por mais difícil que possa parecer (e é!).
Mars Sample Return Campaing, em tradução livre, Programa de Retorno de Amostras de Marte, é o nome dado hoje para o elegante plano de trazer materiais marcianos para a Terra. Esse plano já é debatido há décadas pela comunidade, mas vem sendo colocado em prática mais recentemente por um projeto conjunto de duas agências espaciais: NASA e ESA. Resumidamente, o plano é bem direto. Basta mandar um rover para Marte, capaz de selecionar e coletar as amostras de solo e rochas consideradas relevantes, e armazená-las cuidadosamente até a missão de resgate chegar. Essa missão de resgate, ou, em outras palavras, a etapa de retorno para a Terra, seria composta por um outro rover, responsável por pegar as amostras armazenadas e entregar a um foguete que, em seguida, decolaria ao encontro de um orbitador nas redondezas do planeta, preparado para receber as amostras e retornar à Terra.
Como mencionado acima, esse plano já está em prática e muito mais avançado do que a maior parte das pessoas imaginam. A primeira etapa, aquela de seleção, coleta e armazenamento de amostras relevantes, já está acontecendo, sob responsabilidade do rover Perseverance, lançado em 2021 pela NASA, na missão Mars 2020. É isso mesmo! Além de ser a primeira missão em décadas desenhada para buscar vida pretérita em Marte, ela é também a primeira etapa de um grande plano de trazer as primeiras amostras marcianas para a Terra! Para entender em mais detalhes o que o Perseverance está fazendo em Marte, dá uma olhada nessa matéria aqui do Blog.
As outras etapas do plano se referem a missão de resgate, ou o retorno propriamente dito dessas amostras. É aqui que entram em cena as duas próximas missões do programa, com previsão de lançamento em meados de 2026. Nelas estarão um lander, Sample Retrieval Lander, e um orbitador, Earth Return Orbiter. O lander deve incluir ainda um pequeno rover (Sample Fetch Rover) para coletar as amostras selecionadas pelo Perseverance, além da cápsula de amostras (Orbiting Sample chamber) e um foguete (Mars Ascent Vehicle), responsável por levar as amostras até o orbitador.
Ambas as missões citadas acima estão programadas para chegar a Marte no início da primavera marciana, em 2028. O orbitador inicia sua órbita em torno do planeta e estará corretamente posicionado em tempo da finalização das coletas do rover em solo marciano. O rover então irá transferir as amostras para a cápsula de amostras, que será lançada ao espaço pelo foguete, ambos localizados no lander. Em órbita, o foguete irá transferir a cápsula de amostras para um compartimento apropriado no orbitador (Capture/Conteinment and Return System), que irá seguir viagem de volta à Terra. A cápsula de amostras é então reposicionada dentro do orbitador para o compartimento do veículo de entrada (Earth Entry System), que irá de fato entrar na atmosfera terrestre e fazer o pouso com o material em 2031. A estrutura do veículo de entrada é planejada para manter a integridade da cápsula de amostras e dos tubos em si até que estes sejam transportados para processamento. A figura 1 ilustra a linha do tempo completa do plano.
O plano não parece muito complexo, mas inclui diversos desafios para a comunidade científica, tanto no que se refere à engenharia necessária para o sucesso da missão, como também nas questões relacionadas à proteção planetária e processamento dessas valiosas amostras. Ciente desses desafios, ambas as agências espaciais e seus cientistas continuam trabalhando incansavelmente para tornar essa campanha uma realidade. O resultado dessa missão será histórico para a humanidade. Finalmente, essas amostras poderão ser estudadas utilizando toda a tecnologia que possuímos atualmente, permitindo o avanço a passos largos rumo a resposta para a pergunta que tanto ansiamos: existe vida em Marte?