O amonoide psicodélico

Texto de autoria de
Mírian L. A. Forancelli Pacheco
UFSCAR, Sorocaba, Brasil

Sobre como podemos perceber e comunicar a presença da vida

Logo que comecei a escrever na lousa, percebi que havia alguma coisa errada com meu olho esquerdo. Fechei o olho direito para analisar melhor o estado do olho esquerdo. Eu estava “enxergando” vários “pontinhos de luz”, como fogos de artifício dentro do meu olho. Eu disse a mim mesma que isso era apenas cansaço e continuei com a aula; afinal, era uma sexta-feira à noite, encerrando uma semana intensa de trabalhos na coordenação de curso, pesquisa e orientação de alunos.

Logo que cheguei em casa, continuei percebendo esses pontinhos de luz no olho esquerdo. Dormi dizendo para mim mesma “amanhã devem desaparecer… isso é apenas cansaço”. No dia seguinte, eles estavam mais intensos, maiores, e alguns se aglutinaram formando uma “cortina prateada” que cobria uns 40% da visão do meu olho esquerdo. Acessei os professores da UFSCar via grupo de WhatsApp e perguntei por sugestões de oftalmologistas. Eu ainda tinha sábado e domingo pela frente. Eram dois dias para eu pensar sobre, o que, para mim, era a pior coisa...

Na segunda-feira, eu estava na sala de espera do primeiro de cinco oftalmologistas que fariam parte dessa saga. Quando chegou a minha vez, expliquei a situação. O médico me examinou e disse que detectou uma série de pontos de inflamação na minha retina. Naquela altura, eu já estava com 90% de comprometimento da visão do olho esquerdo. Foi a primeira vez que eu vi um médico suando “em bicas” e levando as mãos ao rosto, na minha frente. Ele voltou para a mesa, procurou um livro, abriu, folheou, coçou a testa…. Fechou o livro: “Isso pode ser um verme comendo seu olho por dentro… pode ser uma inflamação simples, uma doença autoimune … ou até um resfriado mal curado. Não faço ideia! Vou te encaminhar a um colega especialista em retina”. Eu saí do consultório, fui até a rua, e apenas quando atravessei para a outra calçada lacrimejei: “Não quero ficar cega”.

Desde criança eu sou tachada de romantizadora do “overworking” (= trabalhar além da conta). Certa ou errada, as duas únicas coisas nas quais eu conseguia pensar enquanto perdia a visão era: (1) será que vou ficar cega dos dois olhos? (2) E se isso acontecer, como vou continuar sendo cientista na minha área? Realmente eram apenas essas perguntas que me angustiavam… no resto eu poderia dar um jeito.

Vou usar esse drama pessoal para refletir sobre como nós primatas, na dependência que temos da visão, tendemos a usá-la majoritariamente em relação aos outros sentidos (e como isso pode ser insuficiente).


O significado funcional de um prato (alimentação) pode ser resgatado dos tempos mais remotos da humanidade até os dias, em diferentes sociedades humanas. Em outros casos, um objeto pode parecer ser imbuído apenas de estilo,  posteriormente recebendo uma função. Desenhos e cores de bandeiras podem comunicar a identidade de determinado grupo, reforçando hierarquia, ordem ou senso se pertencimento. Bijuterias e pinturas corporais podem comunicar identidade individual, além de realçar atributos físicos.

Esse é um exemplo de como o sentido da visão do investigador (embora muito útil) pode carregar uma série de limitações e vieses capazes de alterar as percepções sobre as intenções do criador/artista. Logo, representações visuais (como desenhos, pinturas ou mesmo palavras escritas) podem ser de difícil interpretação, especialmente sob influência do tempo.

Talvez astrônomos e paleontólogos discordem sobre o conceito de “linearidade”…. E talvez isso tenha relação com o pobre repertório matemático que é exigido de um paleontólogo (ainda bem!). Em ciência, é comum que áreas diferentes usem a mesma palavra para definir conceitos parecidos.

Os exemplos de “Tunguska” e de “A chegada”, embora coloquem a importância do sentido da visão na descoberta e decodificação de mensagens entre terráqueos e extraterrestres, inovam nas experiências sensoriais e na importância do afeto (podemos discutir melhor sobre o profundo significado dessa palavra em outro texto). Essas histórias empolgantes e emocionantes são capazes de inspirar jovens a seguirem carreiras científicas (e renovar os ânimos de cientistas que, como eu, já estão na estrada há certo tempo).

De fato, a ciência convencional só tem a se beneficiar do uso de sentidos adicionais, como audição e tato. Essa exploração sensorial pode tanto promover a acessibilidade e maior inclusão, como também ajudar a evitar os equívocos inerentes à interpretação exclusivamente visual dos dados (potencializando mais descobertas).

Eu quase ia me esquecendo de retomar aqui a última parte da aula que ministrei na fatídica sexta-feira de 2017. Paramos na “Revolução Marinha do Mesozoico (RMM)” (doi:10.1017/S0094837300005352), enquanto eu via “pontinhos de luz”. A RMM foi um momento marcado pelo aumento de predadores que exerceram poderosas pressões de seleção sobre suas presas, que responderam adaptativamente da mesma forma.

Traduzindo em uma “linguagem” mais simples: os predadores se tornaram cada vez mais especializados em predar, enquanto as presas ficaram muito boas em evitar serem devoradas. Uma verdadeira corrida armamentista! Os paleontólogos têm relacionado a RMM a mudanças ambientais (talvez mudanças importantes na química dos oceanos) que permitiram estilos de vida de maior custo energético. Então, enquanto alguns caranguejos podiam investir em garras mais “pinçudas”, alguns gastrópodes podiam se defender com conchas mais “espinhudas”.

Figura 1: Meu cãozinho Gregório.
Figura 2: Visões de uma conha de Murax pacten.

Sobre o “amonoide psicodélico” que o Rafa desenhou na minha lousa… nunca vou perguntar o que ele quis comunicar com as combinações de cores e proporções que ele escolheu. E a minha interpretação, guardo para mim. A arte afeta cada ser humano de uma forma.

Tomara que um dia possamos perceber exploradores curiosos entre nós. Torço para testemunhar a descoberta de vida além da que existe no nosso planeta (não importa quais sentidos tenhamos que usar para isso… desde que todos possam fazer parte do momento). E ouso me perguntar se isso vai acontecer antes ou depois de formigas notarem o quão profundamente podemos observá-las.

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