Texto de autoria de
Gustavo F. Porto de Mello
Observatório do Valongo, UFRJ
POR QUE COLONIZAR MARTE?
Por que deveríamos investir enormes quantidades de dinheiro, recursos e vidas humanas na colonização de Marte? O que há em Marte de tão importante que justifique tanto sacrifício – provavelmente a jornada mais cara, difícil e perigosa jamais empreendida por uma cultura humana? Nosso planeta está infestado de inúmeros problemas da maior gravidade: pobreza, fome, sofrimento humano, conflitos de vários tipos e, pairando sobre todos nós como uma espada de Dâmocles, o aquecimento global e suas terríveis consequências: catástrofes climáticas, elevação do nível dos oceanos, tempestades cada vez mais violentas, secas, enchentes e ondas de milhões de refugiados, para citar apenas alguns dos problemas mais graves com que nos deparamos.
Essas são perguntas importantes e cruciais. São questões profundamente morais, originando-se de uma perspectiva de responsabilidade para com o planeta que gerou e abrigou as únicas formas de vida que conhecemos em todo o Universo. São perguntas motivadas por profundos sentimentos, e até mesmo afeto pelo planeta que nos carrega desde nossos primeiros passos. Por que não investir nossos recursos e energia em solucionar nossos problemas aqui e agora, em lugar de alimentar fantasias escapistas de virar as costas aos nossos problemas aqui na Terra e buscar algum tipo de redenção em um lugar inóspito, distante e sem nenhuma conexão com a origem da humanidade?
À primeira vista, a lógica dessas indagações é inatacável. A manutenção da Terra, da vida terrestre e sua ecologia, da nossa civilização e suas mazelas, e mesmo da nossa qualidade vida, deveriam ser absoluta prioridade na agenda da humanidade para o século XXI, onde se desenham claramente tantas ameaças à nossa existência e bem-estar. Entretanto, um exame mais profundo da natureza dessas questões deixa claro que estabelecer uma presença humana permanente em Marte é não apenas lógico, sensato e necessário, mas se configura como o objetivo mais importante com que se defronta a humanidade. Talvez este seja o ato mais importante de toda a nossa história, comparável à ousadia do primeiro hominídeo que se ergueu nas patas traseiras, ou ao deslumbramento do Sapiens que segurou em suas mãos a primeira tocha na qual vicejava a flor do fogo.
Tal iniciativa irá beneficiar toda a humanidade de uma maneira incalculável. Em primeiro lugar, expandir a vida humana e a biosfera terrestre para além do confinamento do planeta Terra é eminentemente sensato. Estamos acostumados a pensar que o aprazível planeta em que vivemos é uma entidade benéfica e imutável, para sempre destinada a nos abrigar de modo confortável. Nada poderia estar mais distante da realidade. Nosso planeta sofreu profundas crises e transformações em seus bilhões de anos de vida, e nossa biosfera é sobrevivente de catástrofes climáticas globais que provocaram episódios intensos de extinção em massa. O mais letal deles, o da transição do período Permiano para o Triássico, há uns 250 milhões de anos atrás, extinguiu 99% das espécies então existentes. Apenas nos últimos 600 milhões de anos, foram cinco grandes episódios de extinção em massa.
As causas dessas terríveis extinções são inúmeras. Estão bem documentados os impactos de asteroides, tais como o responsável pela extinção do final do período Cretáceo, 66 milhões de anos atrás, na qual desapareceram os dinossauros. Há forte evidência do papel desempenhado pelo fenômeno chamado de supervulcanismo, no qual derrames de lava de enormes proporções se desenrolam por milhares de anos, deflagrando instabilidades climáticas globais, acidificando os oceanos e removendo o oxigênio da atmosfera. Outros perigos já revelados pela astronomia são as explosões de raios gama e as supernovas, titânicas explosões estelares com forte emissão de raios ultravioleta e raios-X, que podem destruir instantaneamente a camada de ozônio terrestre. Sem essa proteção, a própria radiação solar atinge a superfície do planeta sem impedimento, produzindo mutações, queimaduras e uma mortandade generalizada na biosfera.
Essas ameaças não estão no domínio da ficção científica – são fatos científicos comprovados. Parecem ser parte integrante da dinâmica não apenas de nosso planeta, mas do meio-ambiente de nossa Galáxia. Vivemos sob perigo constante de catástrofes internas, geológicas, e externas, oriundas do espaço. Vivemos em um Universo perigoso, no qual o surgimento e manutenção de vida em nosso planeta não parece possuir nada de especial. A vida terrestre sobreviveu a estas e outras catástrofes, mas não é difícil imaginar o que sofreria a nossa civilização, se formos confrontados com um desses cataclismas. Uma grande conflagração de supervulcanismo provavelmente não pode ser prevista, mas as ameaças de impactos de asteroides ou cometas são atentamente mapeadas por governos em todos o mundo. O asteroide Apófis recentemente ocupou o noticiário, pela possibilidade de um possível impacto com a Terra (já completamente afastada) em 2036. Outro asteroide investigado é Bennu, com possibilidade (felizmente, muito remota) de impacto com a Terra em 2175. Bennu, com cerca de 500 metros de diâmetro, liberaria no impacto uma energia equivalente a 1.200 megatons de TNT – ou seja, uma explosão igual a sessenta mil vezes a da bomba atômica lançada em Hiroshima em 1945. O asteroide o qual se crê ser responsável pela mais recente extinção em massa, a do fim do Cretáceo, liberou uma energia equivalente estimada de muitos milhares de vezes todo o arsenal nuclear da humanidade, disparado simultaneamente!
Não precisamos estar à mercê dessas catástrofes. Podemos preservar não apenas a nossa civilização, mas a biosfera terrestre, sua história e sua memória. Para isso necessitamos reconhecer a fragilidade de nossa condição: o corpo físico do planeta não foi abalado por esses episódios de extinção em massa. Asteroides, supernovas e supervulcões nada significam para a Terra. Mas para nós, formas de vida baseadas em água e em carbono, e para nossa frágil ecologia, a mensagem é muito clara. Vivemos no fio de uma navalha, no limite entre o frio e o calor, com nossa sobrevivência continuamente ameaçada por eventos titânicos sobre os quais temos pouco ou nenhum controle. Expandir nossa biosfera e civilização para outros mundos é um seguro de vida, uma rebeldia contra a indiferença do Universo. E se pensarmos de maneira um pouco mais filosófica, na preservação deste milagre cósmico que é a vida, por que não considerarmos essa atitude como um gesto de amor profundo?
No longo prazo, o planeta Terra está fatalmente condenado a morrer, e com ele toda a história maravilhosa de evolução da vida e da espécie humana. Nosso sol está evoluindo para o estágio de subgigante, lenta mas inexoravelmente tornando-se mais luminoso, irradiando os planetas com cada vez mais energia. Em algumas centenas de milhões de anos, a Terra sairá da zona habitável, e se iniciará o lento e natural processo de evaporação dos oceanos e total extinção da vida. Precisamos de um plano de contingência. Marte nos acena.
O CAMINHO PARA MARTE
Projetos para uma viagem tripulada à Marte, a instalação de uma ou mais bases permanentes, e a transformação de tais bases em colônias e cidades existem há muitas décadas. Existem propostas para abordar toda e cada uma das dificuldades e perigos da viagem de ida e de volta, e da permanência no planeta vermelho. No que diz respeito ao trajeto até Marte, há soluções para os desafios da radiação, segurança psicológica e manutenção de vida. Uma vez no solo de Marte, sabemos como encontrar e explorar água; como buscar proteção da radiação, do ressecamento e das baixas temperaturas. No início, tudo será muito difícil, perigoso e caro. Até pouco tempo atrás, esses planos estavam no domínio exclusivo de governos e agências espaciais. Essa era a velha corrida espacial.
De início, uma competição entre os EUA e a Rússia; depois, novos atores se agregaram: a Agência Espacial Europeia, o Japão, a Índia, a China, e outros. Mas é uma medida da dimensão do desafio existencial de expandir a humanidade para outros planetas e novos horizontes o fato de que a exploração espacial já entrou no domínio de atuação do cidadão privado. No alvorecer do século XXI, empresas particulares ambicionam explorar comercialmente o espaço imediato à Terra, turística e industrialmente. Acabamos de assistir aos voos suborbitais das empresas Virgin Galactic e Blue Origin. Para um desses novos atores, a empresa norte-americana SpaceX, objetivo de longo prazo de toda essa atividade é claro: atingir o planeta vermelho, explorá-lo e colonizá-lo (FIGURA 5). A Velha Corrida Espacial, travada entre nações, por prestígio, e baseada exclusivamente na geopolítica, dá lugar a uma Nova Corrida Espacial, entre países e empresas, povos e empreendedores, por novos mercados e novos horizontes. Empresas como a SpaceX, do bilionário norte-americano Elon Musk, já estão testando as espaçonaves que levarão os primeiros colonizadores de Marte. Outro ator privado importante é a empresa Blue Origin, do também bilionário norte-americano Jeff Bezos. Há várias outras empresas, ativamente explorando a possibilidade de turismo espacial, mineração de asteroides, e até a geração de energia no espaço. Existem sociedades civis reunindo cientistas e engenheiros, além de profissionais de todas as áreas do conhecimento e das artes humanas, para planejar e executar a colonização do espaço e de Marte. Essas iniciativas provavelmente estarão no âmago das motivações, dos conflitos, e da definição das regras desse novo jogo que provavelmente levará aos primeiros passos humanos em nosso planeta vizinho. E elas apontam claramente para uma nova fronteira de desenvolvimento da civilização humana e para nossa sobrevivência de longo prazo.
MARTE COMO FRONTEIRA HUMANA
Atualmente, fala-se muito dos exoplanetas, mundos orbitando outras estrelas, muitos deles dentro de suas zonas habitáveis. São mundos sobre os quais quase nada sabemos, e estão a distâncias tamanhas que desafiam mesmo as projeções tecnológicas mais otimistas. Com nossa tecnologia atual, a viagem levaria milhares de anos. Marte, por sua vez, é uma fronteira real, concreta, filosófica. Um planeta próximo, conhecido, alcançável. Um planeta inteiro cheio de recursos, água, combustível, minerais.
Existem planos concretos para viabilizar a implantação de colônias, e paulatinamente desenvolver sua capacidade de autossuficiência na produção de água e combustível para espaçonaves e veículos de solo, assim como oxigênio para a manutenção de vida. Inicialmente, a importação de comida será indispensável, mas no longo prazo, com a construção de grandes habitats herméticos, a agricultura e a criação de animais serão possíveis. Como primeiro passo, a matriz energética provavelmente será nuclear, mas o desenvolvimento de grandes fazendas de energia solar está previsto. Com o crescimento da população e o desenvolvimento de uma base industrial, a colônia se tornará independente na produção de alimentos e construção básica, e mais futuramente, na fabricação de artefatos metálicos, plásticos e cerâmicas.
O atual orçamento anual da NASA gira em torno de 23 bilhões de dólares. Comparemos esse valor com a movimentação financeira mundial, a cada ano, em bilhões de dólares, de algumas indústrias bem conhecidas: pornografia, 70 bilhões de dólares; indústria de fast food, 110 bilhões de dólares; indústria de álcool e tabaco, 177 bilhões de dólares; rendimento dos jogos legalizados, 350 bilhões de dólares; Facebook, 480 bilhões de dólares.
Quanto vale expandirmos de maneira definitiva as bases de vida da existência humana, preservando nossa espécie, nossa cultura, nossa biosfera? Quanto vale ousarmos alçar voos infinitos pelo Cosmos, expandindo nossa cultura, nossa vida, dando espaço a sonhos, conquistando medos, semeando novos mundos?
Marte é apenas o começo.